A Vida Militar

Estavam os capitães de Abril nos últimos retoques da grande aventura que iria libertar o país de quase cinquenta anos de fascismo e de privações da Liberdade, quando este mancebo, vosso amigo, apanhou na Estação de Campanhã, munido da respectiva Guia de Marcha, o comboio da meia-noite em direcção a Lisboa, mas como o destino era as Caldas da Rainha devia de saltar um pouco antes.
Ensonado, depois de uma noite em branco num comboio (repleto de militares já colocados e outros, como eu, que enfrentavam pela primeira vez estas viagens penosas) de outros tempos onde nunca se ouvira falar em Intercidades ou Pendulares, olho de frente a Porta de Armas do Regimento de Infantaria 5 que me vai acolher como hóspede nos próximos dois ou três meses.
Situação muito similar com a que me acontecera quando olhei pela primeira vez o Colégio dos Órfãos e logo ali decidi que o melhor era encarar a vida militar como um campo de férias onde iria fazer muito desporto, brincar aos cowboys, praticar tiro ao alvo e os exercícios nocturnos podiam muito bem ser entendidos como uma caça aos gambozinos.
Depois de uma inspecção sumária, onde nos colocaram todos nus em fila e depois de conferidos os requisitos adequados, é me confiada a farda que devo estimar e guardar até ao dia em que passe à “peluda”. Fomos depois encaminhados para as casernas onde, na minha versão de férias, iríamos pernoitar e onde me foi reservado um lugar na parte debaixo de um beliche bem colocado pois nem era perto nem longe da casa de banho.
Dois dias depois, já todos sabem o que aconteceu, mas nós lá dentro recebemos ordens para não sair das casernas e só ao fim do dia tivemos uma percepção do que estava a acontecer.
Pelos pequenos rádios transístores começamos a ouvir as palavras de ordem que ficaram para a nossa história: - O Povo unido jamais será vencido!, no meio de informações que Marcelo estava preso e que a Pide estava cercada. Foi uma explosão de alegria e quando mais tarde perguntamos porque o nosso regimento não tinha saído para a rua, foi-nos dito que o quartel da Caldas estava em vigilância apertada depois de uma tentativa de golpe frustrada no passado mês de Março.
No primeiro fim de semana a seguir, que coincidiu com o 1º de Maio, saí de licença e fui recebido nas ruas como um herói, numa contradição do ditado popular que diz que o hábito não faz o monge. Eu, que não tinha mexido uma palha ou passado por algum perigo, era ovacionado só pelo simples facto de andar fardado, como na altura era obrigatório, e podia até viajar nos transportes públicos sem pagar bilhete, prerrogativa antes concedida apenas a fardas da PSP ou GNR ou a portadores dos cartões de funcionário de algum Ministério.
Os dias vão passando em exercícios físicos, horas e horas a tentar acertar o passo ao som do “êrdo!, êrdo!, êrdo direito!, êrdo!,êrdo!, e a tentar fugir às praxes, às ratoeiras, aos actos de voluntariado que me poderiam levar não à prometida tarde na secretaria, mas à limpeza geral das latrinas do meu bloco habitacional. Há também a aprendizagem do manuseamento, desmontagem, lubrificação e posterior montagem das G3, das HK21 ou das FBP, metralhadoras ligeiras de fabrico nacional denunciado pela sua sigla que significava Fábrica Braço de Prata.
Depois da semana de campo cumprida em terrenos perto da foz do Arelho, ao lado de Óbidos (eu não vos disse que estava de férias?), em pequenas tendas, menos confortáveis das que eu experimentara antes em Esmoriz ou Madalena, chega o dia da cerimónia do Juramento de Bandeira, em que a minha Mãe fez questão de estar presente, que indica o fim apressado da recruta e nova Guia de Marcha, para mim um Vaucher já que o destino aí indicado é Tavira, Algarve!
O Algarve era já considerado naquela época um destino de férias de excelência, a que muito poucos se podiam dar ao luxo, ainda longe do caos urbanístico que a ganância de uns e a estupidez ou falta de visão de outros gerou, comprometendo um futuro de riqueza sustentada e delapidando uma natureza que não é só nossa. Por isso a minha expectativa era grande e não foi defraudada na hora de pisar pela primeira vez aquela areia fina e limpa e ao mergulhar, com roupa e tudo, só tirei os sapatos tamanha era a urgência de me deixar abraçar por aquele mar calmo e de temperaturas tão aprazíveis. Mas estou aqui para falar da tropa.
O quartel era um pequeno quadrado inserido muito perto da malha urbana, um portão largo à frente, uma porta bem estreita na parede oposta por onde saíamos para a instrução, manhã bem cedo que o calor vinha cedo também (estávamos em Julho e Agosto).
Lembro de ter estranhado esse calor estival e de ter dormido, no colchão arrancado ao beliche, no chão da casa de banho, as primeiras noites junto com outros companheiros de armas. Dormido não será o termo porque as anedotas sucediam-se e as partidas que pregávamos uns aos outros faziam que estivéssemos sempre com um olho aberto, não fosse o diabo tecê-las.
As mais frequentes eram : ensopar de água os colchões que eram de espuma, espremer os tubos de manteiga que vinham nas rações de combate (sim, tubos como os das pastas dentífricas), no interior das biqueiras das botas que, no outro dia calçadas à pressa, começavam a arder ao fim de meia dúzia passos e que ao longo de uns quilómetros de marcha ou corrida no alcatrão abrasador eram um verdadeiro suplício.
Por isso qualquer intervalo na instrução da manhã era aproveitado para recuperar o sono perdido, nem que fossem só cinco minutos, em que me deitava no chão com a coronha debaixo da cabeça a servir de almofada.
O calor apertava e logo cedo aparecia nas traseiras do quartel um homenzinho empurrando um carrito cheio de cervejas Sagres mini e umas sandes de chouriço a que os meus parcos recursos só tinham acesso no primeiro ou segundo dia da semana. O chefe do nosso pelotão, um tenente lisboeta que fazia já a sua segunda comissão, começava a espumar de sede às primeiras horas da manhã, sede essa que o transformou no melhor cliente do homem do carrito, e havia manhãs que bebia dez ou doze minis, levando-o a esquecer que estava ali para preparar homens que, apesar do 25 de Abril, estavam ainda destinados a embarcar rumo ao Ultramar, se não para defender o Império, para defender os que queriam regressar ao continente naquela que se tornou a maior retirada depois da Segunda Guerra Mundial.
Lembro-me de um compincha baixote, uma réplica humana de um daqueles cabeçudos das festas e romarias, mas numa escala muito reduzida, pois ele não passava do metro e cinquenta e cinco. Tinha o apelido de “ Boca de Sapo”, não pela boca escancarada e com os dentes da frente zangados uns com os outros, mas porque tinha um Citroen DX, um Boca de Sapo.
Era uma espécie de quadradinho de banda desenhada a figura que ele fazia dentro de um carro tão grande como aquele. Deveria ir sentado em pelo menos duas almofadas! Mas era despachado, um lisboeta de gema, reguila.
Fizemos juntos a semana de campo, na Serra do Caldeirão, rodeados dos maiores confortos que podíamos arranjar, atendendo às circunstâncias. Normalmente ficavam três mancebos em cada tenda, sendo esta formada por três panos, um de cada um, o que fazia que as tendas tivessem sempre um lado aberto. No nosso caso éramos só dois mas tínhamos quatro panos, que davam para fechar a tenda completamente e assim ficarmos abrigados dos olhares do nosso tenente quando este simulava um ataque ao acampamento e todos deviam saltar para fora das tendas de armas na mão. Nós ficávamos quedos e mudos, deitados dentro da tenda.
Lembro-me de termos improvisado uma lamparina feita com a tampa de uma lata de graxa cheia de azeite que fomos surripiar à cozinha de campanha, aproveitando para trazer junto chouriços e frutas, que estavam destinados aos oficiais, variando assim a dieta fornecida com as rações de combate.
Foi nessa altura que a ligação à mãe dos meus filhos mais velhos se tornou mais forte o que me fazia esquecer a dureza da semana para me concentrar no prazer de a rever ao fim de semana, mesmo que para isso tivesse que enfrentar doze horas de viagem para cada lado, não num Autopullman com Aire Acondicionado, mas numas camionetas alugadas só para feijão verde que saiam de Tavira sexta-feira por volta das seis da tarde e chegavam à Praça da Batalha às seis da manhã de sábado.
O tempo passava mais rápido na vinda com a expectativa de rever os que amamos, o contrário acontecendo na viagem de regresso que começava às cinco da tarde de domingo, pois devíamos estar no quartel antes das seis da manhã de segunda para podermos responder à chamada já fardados e alinhados na parada.
Tinha alugado na cidade, em conjunto com mais quatro compinchas, um quarto para passar os fins de semana em que não vinha a casa, ou por estar de serviço ou por o dinheiro não dar para a camioneta, e onde deixava a roupa para lavar. Nesses fins de semana aproveitava para descobrir o Algarve à boleia, para conhecer os arraiais e festas populares que em meses de Verão eram muito frequentes e para desenferrujar o inglês e o francês com as muitas turistas que já então proliferavam por ali.
Acabado o Curso de Atirador, a minha especialidade, e já com as divisas de Furriel Miliciano recebo nova Guia de Marcha: Beja!
Situado em plena planura alentejana, nos arredores da cidade, o quartel de Beja era uma área imensa, que se tornava ainda maior nas noites em que estava de serviço como sargento de dia e devia fazer a ronda nocturna, sozinho, levando comigo uma chave que teria de introduzir numa caixa em todos os pontos de controlo que eram cerca de vinte. Cheguei em Setembro, no meio da época da caça e por isso havia na messe de sargentos coelhos com fartura, que chegavam aos nossos pratos nas mais diversas formas.
Encarregado da instrução de dúzia e meia de mancebos vindos de todos os pontos do país, passava os dias no “êrdo, direito” e recebi a segunda missão de responsabilidade, depois de ser sacristão no colégio, que era gerir as sessões práticas de fogo real na carreira de tiro, recebendo o cognome de Sargento de Tiro. Por vezes não eram dados todos os tiros que seriam da praxe o que me fez passar uma tarde inteira, no fim daquela recruta, a estourar caixas e caixas de munição.
Tinham passado já seis meses depois do 25 de Abril e nas casernas o ambiente era mais descontraído, para não dizer uma anarquia, havendo na casa das caldeiras, à noite, reuniões para ouvir música de Jimmy Hendrix e fumar uns charros.
Uma nota negativa pela minha passagem por Beja foi o suicídio do meu soldado 21, que encostou a G3 por baixo do queixo e disparou fazendo um desenho com sangue na parede branca da camarata. Seguiram-se inquéritos e mais inquéritos, não me sendo imputada qualquer responsabilidade.
Aqui tive a noção do que significa a expressão “amplitude térmica”. Eu, que ouvira falar das temperaturas elevadas que com frequência fustigam aquela terras, nunca passei tanto frio na minha vida como nas noites do quartel de Beja, chegando a dormir vestido, só tirava as botas, no meio de cinco ou seis cobertores.
Antes do Natal novas instruções indicam que devo apresentar-me no quartel de Abrantes. É curioso mas não tenho grandes memórias dos tempos passados neste quartel, só sei que as viagens de fim de semana eram agora feitas de comboio, com mudança na incontornável Estação do Entroncamento. Os preços do comboio, para militares, eram ridiculamente baixos, dando-me a oportunidade de viajar muitas vezes em Wagon Lit, cujo preço naquela altura era de cem escudos, com direito a ser acordado na estação anterior pelo revisor do comboio. Era um luxo!
Ultrapassada esta branca na memória chego com armas e bagagens à entrada do meu próximo complexo turístico. Cinco estrelas, o maior que eu vira até então. Ampla avenida central, arborizada, ladeada por robustas construções, uma ampla zona de recepção e controlo, com cinema e outras comodidades como enfermaria, que eu viria a conhecer mais de perto uns meses à frente. Estava a dar entrada no complexo militar de Santa Margarida.
Estou integrado num Batalhão que vai em breve partir para Angola, já não para o mato mas para controlar as cidades, especialmente Luanda de onde vinham alguns relatos preocupantes. Não sou nenhum herói nem muito corajoso e vivia angustiado por saber que tinha que abandonar os que me eram queridos e na incerteza se voltaria inteiro.
As saudades de casa, ler namorada, eram muitas e lembro-me de me ter desenfiado duas vezes a meio da semana para matar saudades ficando hospedado numa pensão ranhosa em frente à Estação de Campanhã, visto não poder ir para casa para não alertar a minha mãe.
Noutra altura em que me calhou ficar de serviço um fim de semana e não arranjando um substituto, fui ter com o capelão da unidade e disse-lhe que a minha namorada tinha fugido de casa, sendo imperioso que me dispensassem para que eu, que sabia onde ela estava escondida, a convencesse a voltar para casa. A coisa pegou tendo direito a mais um dia, se preciso fosse, para resolver tão triste assunto, mas deveria ao voltar, fazer um relatório que por sinal nunca fiz, caindo depois o caso no esquecimento.
A estrela da sorte que eu desejava que me protegesse em Angola, adiantou-se e trouxe ao meu conhecimento que havia camaradas de armas a serem dispensados com um chamado “ Amparo de Família”, que se destinava a quem tivesse outro irmão mais velho na tropa ou já ferido ou morto em combate, ou então aos que fossem precisos para o sustento da família.
Achei que preenchia os requisitos necessários e invoquei que era filho único, que a minha mãe já tinha sessenta anos, pobre e que deveria sair dali para ir ajudá-la. A sorte protege os audazes, ou pelo menos aqueles que se mexem e fazem por isso, e ao fim de uns quinze dias de ter metido o requerimento, viajo para Abrantes para levantar o documento que me passou à disponibilidade em 22 de Maio de 1975, treze meses depois do começo desta aventura.
E, como tudo no Universo está em equilíbrio, a mesma sorte deixou que o taxi, que me transportava de regresso a Santa Margarida, tivesse um acidente enviando-me inconsciente para o hospital com dúvidas de traumatismo craniano e depois para a dita enfermaria do quartel onde acordei sem saber o que se tinha passado. Acordei com vómitos de sangue temendo ter alguma hemorragia interna mas não, era o sangue que eu tinha engolido quando bati com os dentes na cabeça do taxista, que guiava à minha frente, o que agora passados trinta anos levou à queda do primeiro incisivo e consequente uso de uma prótese dentária.
Mas foi o único sangue derramado em defesa da Pátria!