Fora do Colégio

Acabado o quinto ano antigo, e como não havia no colégio o sexto ano, fui inscrito no Liceu Alexandre Herculano. Era perto, bastava atravessar o cemitério, subir António Aroso e estava lá. Dezassete anos de corpo, mente muito nublada por seis anos de internato em ambiente austero, foi um choque.
A irreverência juvenil dos meus novos colegas, que já tinham vivido o Maio de 68, foi contagiante e desinibidora. Outros horizontes se abriram, assim como as portas do Café Nova Sintra, onde o cafézinho da manhã era servido na companhia de sorrisos femininos, que me tinham sido negados durante tanto tempo, e que agora me faziam esquecer a hora de entrada nas aulas levando os padres do colégio, depois de receberem o boletim mensal de faltas, a mostrar-me a porta da rua. Que eu atravessei, dando um desgosto tremendo à minha querida Mãe, meio anestesiado por um mundo novo que se entranhava nas veias com toda a oferta de uma nova vida até aí por mim desconhecida.
O aluno brilhante e prometedor de anos anteriores esfumou-se no meio do fumo dos cafés, das tertúlias, das festas à média luz, dos namoricos. Numa época da vida em que todos os perigos espreitam, em que o nosso caminho pode seguir rumos transviados, tive o privilégio de ter sempre sorte na escolha dos amigos, melhor dizendo, a sorte deles me terem aceitado como amigo, não dando qualquer valor às minhas raízes humildes, antes apreciando o meu sentido de humor e a minha alegria incontida de adolescente que se sente liberto de tantas amarras.
Desses tempos lembro o amigo Luís, (loiro, olhos azuis, o que tornava o parceiro ideal para um moreno, cabelo preto) com quem vivi páginas de aventuras gloriosas. O mais velho de três irmãos, que viviam com a mãe viúva num dos lugares mais fascinantes que eu conhecia aquela data: nas traseiras da Igreja de Santa Clara, onde hoje se alargou o Instituto Ricardo Jorge.
Naquela altura os pré fabricados não estavam lá e a casa abria-se para um enorme terraço que ia descendo pela encosta, em direcção ao rio, em socalcos cobertos de árvores de fruto e pequenas hortas. Tudo isto emoldurado pela muralha Fernandina, onde quando éramos mais pequenos reinventávamos as conquistas dos cavaleiros dos primórdios da nacionalidade. O irmão mais novo, o Zé, em pequeno adormecia sempre balançando a almofada ao mesmo tempo que cantava músicas dos Beatles num inglês algarviado.
Lembro-me dos tempos em que ele namorava a Regina, uma de três irmãs de Mondim de Basto a quem o pai tinha alugado uma casa em Coelho Neto, e das festas em sua casa. Namoriscava eu, por aqueles dias, a Olívia, ao som de “Peter Frampton comes alive”.
Devo dizer-vos que as festinhas eram muito frequentes e a qualquer hora. Uma vez, numa rua em frente ao Liceu de Gaia, estávamos às nove e meia da manhã numa festa às escuras quando entra o dono da casa, alertado por uma vizinha madrugadora, tropeça nos dois ou três primeiros corpos que já se estendiam no hall de entrada, acende a luz e com uma fleuma mais que britânica diz:
- Meu filho! Diz, por favor aos teus amigos que agradeces a sua visita mas já são horas de irem embora!
Noutra ocasião, a meio da tarde, na casa do Becas na Constituição, fomos surpreendidos pela mãe deste que regressara mais cedo do trabalho. Ele, que estava no quarto com a futura mulher, foi logo apanhado. Eu e a Margarida, que estávamos na sala, conseguimos sorrateiramente escapulir pela porta para as escadas sem a mãe dele, que se desdobrava em impropérios e lições de moral, nos ter visto. Um susto!
O Luís casou com a Rosa Margarida, amiga que eu trouxe do Liceu de Gaia para uma das festas memoráveis que se faziam em sua casa, tudo às escuras, daquelas músicas que nunca mais acabavam.
Mas a nossa maior aventura foi ir a Lisboa assistir a uma corrida de Fórmula 2 no autódromo. Um Sábado de manhã esticamos o dedo e apanhamos uma boleia em Santo Ovídio que nos deixou às portas de Lisboa. Sorte pelo pouco tempo de espera, nem tanto pelo condutor, um médico de meia idade, que passou a viagem a falar de política, assunto que anos antes do 25 de Abril nos deixava sempre desconfiados não fosse o interlocutor ser um agente da Pide disfarçado a tentar tirar nabos do púcaro para depois nos enfiar nos calabouços da sede ao lado do cemitério. Falava-se na altura que esta proximidade não era inocente nem coincidência e que seria estratégia para fazer desaparecer muitos dos presos.
Mas lá chegámos, mochila às costas com uma muda de roupa, algumas sandes e no meu caso uns parcos 100 escudos no bolso. Pequeno passeio pela Avenida da Liberdade, procurar e encontrar uma pensão manhosa num beco estreito perto do Rossio.
Domingo de manhã acordar cedo para nos fazermos ao caminho que naquela altura não havia A5 e o Grande Prémio esperava por nós ao princípio da tarde. Movimento intenso rodeava o Autódromo levando-nos a sair da camioneta muito longe da bilheteira. Uns Troféus para aquecer e depois a corrida principal. Não sei quem ganhou, mas lembro-me que estava lá o Fitipaldi e recordo sobretudo o cheiro a gasolina especial que teimava a colar-se às narinas e a entranhar-se na roupa.
Fim da corrida, o debandar para Lisboa e no fim daquela tarde de Verão esticar de novo o dedo indicando o Norte. O desalinho das roupas, o cabelo comprido não ajudaram que a coisa se resolvesse tão facilmente. Rotunda do Relógio, meia noite e a mão, já cansada de tanto esticar, recolheu dentro da mochila para procurar o que restava de um pão amassado que dividimos irmamente e depois se afundou nos bolsos onde a custo angariou entre moedas soltas uns pobres 10 escudos.
Por sorte a noite estava linda, temperatura amena e por fim, não resistindo ao cansaço, os corpos esticaram-se na relva, mochilas debaixo da cabeça, olhos fitando um céu salpicado de estrelas, últimas palavras a combinar o destino a dar aqueles 10 escudos na manhã seguinte. Seriam concerteza para um pequeno almoço à base de pão, um copo de leite para ele, um café para mim.
Assim foi e o dedo esticado de novo. Uma boleia que depois de muitas saídas do itinerário principal (o homem era vendedor) nos deixou às portas de Leiria, ainda a duzentos quilómetros de casa.
Encostados nas grades da ponte sobre o rio Liz, bem no meio da cidade, começávamos a duvidar da nossa sorte, quando um carro pára e nos franqueia as
portas para afundarmos os ossos doridos no conforto dos assentos.
Era do Porto e o filho também tinha usado o cabelo comprido até à semana anterior, agora já não porque tinha vindo trazê-lo ao quartel para aí começar a recruta. Palavra puxa palavra e descobrimos que era o pai de um nosso amigo, o Zé do Real, assim chamado por o pai ser dono do Café Real, local de prostituição instituído na rua do Cativo, muito conhecido do maralhal que por vezes, em noites de ócio, se entretinha, à sua porta, a cronometrar o tempo que demoravam as prostitutas a aviar os clientes nas pensões mesmo ali ao lado. O homem ficou contente com a coincidência e por alturas de Grijó levou-nos a jantar um belo bife que era a única comida quente que o nosso estômago via em três dias.
Outra aventura com o Luís foi um fim de semana para ver as corridas em Vila Real, viagem pelo Marão, acampamento na curva da Timpeira perto do rio, o convívio com tanta gente que aí acorria para desfrutar de um desporto que tinha muitos adeptos e que aqui no Norte tinha em Vila Real e em Vila do Conde os seus santuários.
Por falar em Vila Real lembro-me de outra aventura passada com um amigo que já saltou fora desta vida, tendo atravessado o abismo empurrado pela ponta bicuda de uma seringa.
O amigo era o Joca, nome de guerra dos tempos de juventude, que morava na rua das Fontaínhas e que, como eu, frequentava a zona da Batalha e o Salão Vasco da Gama. Creio não estar enganado ao dizer que foi um jogador de basket de eleição do Clube Vasco da Gama que tinha um pequeno pavilhão ali no Jardim das Camélias.
Rapaz vivido, vivaço, que chegou a ser amante ou proxeneta da dona de um bar que lhe dava tudo: carro, mota, roupas, dinheiro, despertando muita inveja nos amigos que além de todas estas benesses lhe invejavam o facto de poder foder, foder, foder.
Um dia o meu amigo Joca fez-me um convite diabólico: ir de mota até Vila Real para ver as corridas. Ele arranjou a mota, o capacete e o dinheiro para as despesas, pois eu era um teso, sem um tostão. Mas ele fazia questão de me levar e eu lá fui. Melhor, fomos seis ou sete cada qual na sua motoreta. Ele levou uma Sachs V5 e eu fui montado numa pequena Puch de dar gás. Nunca tinha andado de mota e fazer uma viagem daquelas, tantos quilómetros, atravessar o Marão, foi de facto uma grandiosa aventura no exacto sentido do termo. Tão grandiosa que me sentia como os cavaleiros do asfalto do filme Easy Rider.
Vi por duas ou três vezes a morte à minha frente. Uma vez ao ultrapassar uma camioneta que era mais comprida do que eu pensava ou a mota andava mais devagar. Outra vez foi em pleno Marão, já de noite, em que fiz mal uma curva e por pouco não caí por uma ribanceira abaixo. Conseguimos lá chegar já no outro dia, depois de umas horas de descanso no meio da serra, com o corpo todo dorido e a minha mota já no limiar da resistência forçando- nos a despachá-la de camioneta para o Porto.
Depois das corridas do primeiro dia montamos as tendas perto do rio no meio de uma amálgama de gentes, uma espécie de hippies maltrapilhos que estavam ali mais para curtir o ambiente do que para ver as corridas propriamente ditas.
O Joca não teve a mesma sorte que eu na escolha dos amigos e foi arrastado para o dark side, bem fundo onde foi traído por uma overdose. Cruzei-me com ele uma ou duas vezes já perto do fim, falámos e ele nunca me pediu um tostão para
o vício como normalmente fazem os viciados.
Que esteja em Paz!
As ideias vão chegando aos repelões, umas claras, outras já difusas pelo tempo passado. Sem dúvida que entre os 18 e os 21 anos (idade com que fui para a tropa) as coisas e os factos sucediam-se a uma velocidade vertiginosa. Hoje recordo e vou relatá-los como folhas soltas de um diário que nunca escrevi mas que guardo com mais ou menos rigor na minha memória. Para classificá-los cronologicamente, nem com a ajuda do Carbono 14 lá ia, por isso vão para estas folhas na ordem que forem aparecendo.
Lembro de uma moça linda que trabalhava no Emílio de Azevedo Campos, rua 31 de Janeiro. Tão linda que me dava à canseira de ir vê-la passar, quando saía para almoçar, na esquina de Santa Catarina. Depois ela metia por Santo Ildefonso e este vosso amigo, desde sempre amante da beleza feminina, corria por Santa Catarina, Passos Manuel, Praça dos Poveiros, para poder vê-la passar de novo perto do Jardim de S. Lázaro.
Lembro dos Porfírios, casa de referência para a juventude da época, por ser a loja mais updated em termos de Moda e acessórios.
Tinha no seu interior underground o último grito da moda londrina ditada pelos grupos rock da altura: Beatles, Rolling Stones, Led Zepplin. Tinha um espaço onde se podia desenhar ou pintar quadros que depois eram expostos e postos a concurso.
Sempre cheio era um corrupio de mini-saias, gangas, casacos compridos orlados de pêlo tipo carpélio, cabeludos, fumadores discretos de erva. A música era espectacular e as empregadas eram todas giras e boas. Desses tempos, além das saudades, guardo a amizade dos irmãos Porfírio José e Porfírio Júnior, grandes contadores de anedotas, com pinta e com um sentido de humor que marcou uma época e uma geração e da sua irmã Luísa.
Lembro do Arturinho dos Tiques, figura conhecida pelos ataques e gritos que dava em plena caminhada pela Baixa. O mais giro é que ele era jogador de basket e na hora de lançar a bola para o cesto fazia sempre um tique e um Huuuu!!! ou um assobio.
Lembro do Armando Palhaço, verdadeiro cavaleiro do asfalto, o motard mais conhecido da cidade não só pelas motas potentes para a época (500 cm3) que conduzia, mas pelas acrobacias malucas que fazia a toda a hora e em todo o lugar e sobretudo pelos “malhos “ que o conduziram várias vezes ao hospital onde, em sucessivas operações, ia acumulando próteses que lhe mudaram o nome para Armando Platina.
Lembro outro amigo das motas, que hoje faz o favor de ser meu amigo também, que não teve tanta sorte e num único acidente comprometeu o uso do seu braço esquerdo que paralisou, atrofiou, e que após muitas sessões de fisioterapia recuperou o suficiente para pegar na sua máquina fotográfica e produzir as melhores fotos de Moda que encheram durante anos as melhores revistas da especialidade. Estou a falar do meu querido amigo José Luís Dias.
Lembro das casas de discos dessa altura, as discotecas no verdadeiro sentido da palavra, onde ouvíamos os últimos lançamentos do vinil em LP ou Single nas suas cabinas insonorizadas. Houve um LP dos New Trolls que fui ouvir dezenas de vezes antes de o poder comprar. Ainda tenho esse disco mas está muito arranhadinho porque antigamente não se tinha acesso directo às faixas pretendidas como acontece com os CD. Tentávamos acertar a ponta da agulha no sítio certo mas a maior parte das vezes era impossível evitar aquele ruído estridente que até arrepiava os pêlos e os cabelos, sinal de que havia mais um arranhão na superfície do vinil.
Não posso deixar de fazer aqui referência ao meu hobbie preferido dos fins de semana: os Bailes! Comecei por volta dos quinze, dezasseis anos o meu périplo pelas salas de baile da cidade e arredores, antros de roço e lascívia, onde alguma juventude da época, eu incluído, tinha a sua primeira proximidade com o sexo oposto. E foi aí que tive as primeiras aulas da “Arte do Bem Saber Apalpar Sem Ninguém Ver “, apesar dos avisos de alguns Marcadores de Sala - os supervisores de cada sala de baile, defensores dos bons comportamentos, bons costumes - que diziam ao altifalante:
- É proibido aos cavalheiros colocar as duas mãos nas costas da dama! Mesmo naqueles tempos as coisas evoluíam e fui passando por vários graus de aprendizagem, primeiro numa salita nas Escadas dos Guindais, tudo às claras, onde dei efectivamente o primeiro abraço a uma moçoila e aprendi a dançar o slow, passando pelos bailes de S. João nos blocos da rua Duque de Saldanha ou na Praça de Alegria, mesmo ao lado do colégio, passando pelas Associações Culturais e Recreativas de vários corpos de bombeiros como os de Coimbrões ou S. Mamede, pelo Bemfazer da Triana, na Areosa, pela Tuna de Santa Marinha perto do cais de Gaia, e por aí fora até chegar ao Salão Vasco da Gama, rua Alexandre Herculano, onde, já quase às escuras e com alguma habilidade, se podia conseguir desapertar um soutien, dar beijos na boca e até, com a ajuda e protecção dos casacos maxi, chegar com os dedos às partes mais íntimas da parceira, aprendendo aí mais umas lições sobre o famoso ponto G.
Lembro das partidas de bilhar no Café Sagres, onde se passavam tardes e noites enfumaçadas para concluir uma partida de “Matos “ no snooker ou então um jogo às Três Tabelas no bilhar livre. Haviam nesse tempo alguns salões de bilhar que eram considerados verdadeiras catedrais: o Café Palladium, onde está agora o C&A em Santa Catarina, o Café Embaixador em Sampaio Bruno, o Café Imperial na Avenida dos Aliados, onde está hoje o McDonnalds, o Café Ceuta na rua com o mesmo nome.
Nunca fui um jogador exímio mas gostava de tentar as minhas carambolas, nunca jogando a grandes apostas em dinheiro porque haviam sempre os mafiosos que nas primeiras tacadas pareciam acabados de descer, na estação de S. Bento, dum comboio vindo da trabinca, para depois de perderem a primeira partida se transformarem em campeões e levarem os poucos tostões - que a minha mãe me tinha dado para o almoço na escola e que eu tinha substituído por uma bola de berlim e um café ou por um quarto se sêmea e uma gasosa (assim o estômago ficava empanturrado por gases e miolo e não se queixava ) - deixando-me com cara de urso ou pascácio.
Das aulas no liceu Alexandre Herculano não tenho muitas saudades. Eu, que era um aluno de francos recursos no colégio, tive que enfrentar uma mudança radical no método de ensino e ao mesmo tempo uma mudança curricular nas matérias o que me fez perder o fio a meada e me desmotivou. Lembro sim dum professor de geografia, o professor Francisco Eleutério Pardal, que tinha a particularidade de não conseguir pronunciar os “zês “ , substituindo-os por “esses“, o que levava os alunos, com frequência, a pedirem explicações sobre a Torre de Pizza. Era uma gargalhada em surdina, não queríamos perder tamanha ocasião de o provocar. Lembro que, como não era permitido fumar em todo o liceu, os fumadores se juntavam ao fundo do pátio, numa formação tartaruga que faria corar de inveja as legiões romanas, para se furtarem à identificação por parte dos contínuos e escaparem às sanções disciplinares.
Mas nada comparado com as memórias do Liceu de Gaia.