A Música

No quarto com papel de parede havia um rádio antigo de válvulas, peça muito bonita, caixa de madeira escura com os seu botões e teclas cor de marfim que debitava, por vezes com a ajuda indispensável de uma faca que lhe aumentava a captação do sinal, algumas melodias da época a que eu não dava grande importância. Lembro-me apenas de alguns nomes como Dalida, Rita Pavone, Gianni Morandi.
As jukeboxes das Fontaínhas trouxeram aos meus ouvidos sonoridades bem diferentes: Black is black (I want my baby back), Delilah (Tom Jones), muito Roberto Carlos, Bee Gees. As primeiras notas dos Beatles com Obladi Oblada e Hey Jude e com a sensação que algo estava a mudar, mesmo entre as paredes austeras do Colégio. E a coisa foi ficando mais pesada com Led Zepling, Black Sabath, Huraiah Heep, Deep Purple ou mais sofisticada com Pink Floyd, Yes, Tangerine Dream and so on, and so on.

Mas o que mais mexe comigo, ainda hoje, é sem dúvida Pink Floyd. A sonoridade enche-me a “alma”, os solos de guitarra arrepiam-me o ser. E se fecho os olhos vejo passar diante de mim tantos bons momentos da minha juventude. Juventude que eu tento defender com unhas e dentes, pelo menos no espírito, porque o corpo já conheceu outras horas de glória e vai seguindo inexoravelmente o seu destino.
Mas também conheci a música do outro lado. Sim. Do lado do artista! Sem glória nem sucesso mas com o mesmo formigueiro, a mesma dor de barriga que a todos atormenta na hora de subir ao palco.
Aprendi a dedilhar as cordas da viola com o padre Rocha. Os dedos sangravam entre os Mi Maior e os Lá Menor, mas com perseverança lá fui arrancando uns acordes da Avé Maria de Shubert.
Os tempos eram de mudança e enquanto o Diabo esfrega um olho, os padres viram entrar pela porta dentro uma aparelhagem completa que faria corar de inveja algumas das bandas mais populares da época: órgão Hammond, guitarra Fender Stratocaster, bateria Premier. Um luxo! Estava criado o Ritmo 70! Eu e o Artur na guitarra, o Moreira na bateria, o Costa no baixo e o padre Rocha no órgão. Sim, meus amigos, estávamos em 1970 e este artista encantava plateias (não muito exigentes é certo) por vários pontos do país.

Lembro-me de um espectáculo em Melres, Gondomar, onde aconteceu uma cena divertida: para amaciar a garganta o meu amigo Artur, na altura dono da guitarra solo e hoje pintor e caricaturista de talento, foi chupando, uns atrás dos outros, rebuçados da tosse. Na hora de cantar era tanto o açúcar a colar-lhe as cordas vocais que foi uma aflição para levar até ao fim “ la cucaracha”. Outro no Colégio da Bonança (Gaia) perante uma audiência feminina histérica, outro numa festa de finalistas dum colégio de St. Tirso, outro ainda em Vilarandelo, Chaves, organizado por um colégio de freiras.
Mas o ponto alto foi o programa Canal 13 na RTP. O ponto alta em adrenalina (a nossa actuação foi riscada do alinhamento final e nunca foi vista por ninguém) pois para jovens dum colégio de padres estar nos bastidores de um programa de
tal grandeza a nível nacional era qualquer coisa de fantástico.
Os outros convidados estavam como nós atrás da cortina e “convivemos” com a Miss Portugal da altura, Maria João Lucas, e vimos passar ao alcance dos olhos (e das mãos) um corrupio de bailarinas com fatos de banho cetim brilhante e meias de rede na qual gostaríamos de ser pescados e arrastados para um delírio qualquer.
Antes da música já outra Arte me levara ao vaidoso prazer de recolher os aplausos de plateias que se acotovelavam para ver os artistas preferidos do colégio em dramas, em comédias, em operetas. A meu lado contracenava (e levava metade dos aplausos) o meu querido amigo António Capelo (sim! esse das novelas e dos filmes) o que me leva a pensar que o meu percurso pela vida poderia ter sido outro. Mas eu estou muito contente com este.
Até ao dia, em que numa peça dramática em três actos, eu fiz o impensável. Para meu azar eu recebia a meio do segundo acto uma deixa exactamente igual a outra que só aparecia quase no final da trama.
A minha resposta é que era diferente. Agora imaginem eu responder a meio do segundo acto a frase do final.
Resultado: metade da peça desapareceu, ninguém percebeu patavina da história e o padre director foi pessoalmente aos bastidores para me esticar as orelhas como se quisesse que elas tomassem a forma das orelhas do animal que a sua boca repetia sem cessar: - Burro, Burro, Burro!
Foi o ponto final duma carreira de sucesso.