O Trabalho

Depois da já mencionada primeira experiência na farmácia seguiu-se um trabalho de Verão nas Galerias Mini Max, esquina de Cedofeita com a rua do Breyner onde está agora o Me Allegro.
Aí ficava eu atrás de um pequeno balcão onde deveria servir pequenos almoços logo pela manhã e depois durante o dia eram sandes, cafés, sumos, para terminar o dia em limpezas para deixar tudo preparado para o dia seguinte. Felizmente foram só algumas semanas de praia perdidas.
O meu primeiro emprego a sério foi, acabado de sair da tropa, nas Galerias Palladium. Os salões que antes tinham assistido às minhas partidas de bilhar ou ping-pong iriam agora assistir ao meu desempenho como empregado de armazém num lugar de grande responsabilidade já que cabia a mim dar entrada e saída de todas as peças, apontando na respectiva folha de artigo o seu movimento e voltar a colocá-la no seu lugar, numa caixa arquivadora, no meio de milhares de outras.
Pouco tempo depois e com os meus dotes matemáticos já estava a marcar artigo socorrendo-me de uma calculadora mecânica, pequena caixa metálica com umas rodas dentadas que accionadas por duas manivelas laterais, na forma correcta, nos davam os preços finais já com o lucro e o imposto de transação, o equivalente na altura ao IVA de hoje.
Formigueiro laborioso foi crescendo em altura até chegar ao terceiro andar o que tornava imperioso a contratação de mais pessoal, principalmente na época de Natal e saldos. E entravam revoadas de miúdas eventuais que logo nos primeiros dias eram examinadas pelos mais atiradiços, para ver quais seriam as hipóteses de um novo romance, uma nova aventura. Eu tive a minha parte do banquete.
Com o crescimento, a equipe de decoração então liderada pelo Costa Real, um entendido na matéria que viera de outra casa de referência, a Confiança, e que acabou por ser despedido por abrir a carcela à frente de uma empregada que não gostou do atrevimento, pediu ajuda para fazer decorações de Natal.
Fui eu o eleito. Lembro-me de ter começado nas largas escada do fundo, que davam acesso do rés do chão ao primeiro andar. Aí existiam uns nichos onde pela primeira vez eu espetei os alfinetes tentando dar a melhor forma e estética a conjuntos de roupa interior de homem e senhora.
A técnica foi evoluindo com a ajuda do Costa Real e fui também observando as montras das outras lojas fazendo uma amálgama de tudo o que observava e ia dando certo. Nesses tempos não havia casas especializadas em decors como há hoje e todo o material para as montras era desenhado e produzido por nós. As aulas de trabalhos manuais e desenho, que no colégio produziam as minhas piores notas, revelaram-se uma mais valia fundamental no alicerçar da minha vida profissional, já que na hora de pegar no martelo ou no serrote eu sempre soube dar conta do recado.
Com a saída do Costa Real abriu-se o caminho para a liderança daquele departamento, já que o outro candidato, o Celso que tinha umas mãos maravilhosas capazes de transformar qualquer material numa obra de arte (lembro entre outros trabalhos as renas que fazia para o Natal ou então o ET, tudo feito em esferovite e gesso, um primor), era aldrabão, faltava muito e não dava segurança.
Portugal abria-se ao exterior e por meu pedido e sugestão foi-me dada a possibilidade de estagiar na Suíça, em dois grandes armazéns, para ver como funcionavam as equipas de decoração.
A diferença era abismal não só pelos recursos financeiros mas principalmente pelos materiais e elementos decorativos já fabricados a que eles tinham acesso.
Voltei fascinado com a Suíça o que acabou por, num acto impulsivo, juntar a família (uma mulher que deixou o seu emprego de educadora de infância, um miúdo com quatro anos e outro com quatro meses) e partir, à papo seco, à conquista do El Dorado.
As coisas não correram como o esperado, creio mesmo que foi a única empreitada que não consegui levar a cabo até hoje, e voltei com o rabo entre as pernas para, eu que fora o chefe de decoração do Palladium, aceitar com humildade um lugar de porteiro nos Pintos em Santa Catarina.
Nunca tive vergonha do trabalho, era novo ainda e sabia que com esforço e dedicação as coisas haveriam de melhorar.
Esqueci-me de mencionar que pouco antes de partir para a Suíça tinha frequentado, um pouco por acaso, na Associação de Comerciantes do Porto, um curso de decoração de montras de ourivesaria, ministrado por um professor suíço, que se viria a revelar mais tarde a porta de entrada para um mundo fascinante que enriqueceu a minha vida profissional e pessoal (pena é que não tenha enriquecido no sentido literal do termo) e onde me movimento até hoje.
Fui completando o parco ordenado de porteiro com umas decorações na montra da Twins, duas casas abaixo dos Pintos, e fruto de um conhecimento feito no tal curso, comecei a decorar a montra de uma ourivesaria que abriu no Centro Comercial Stop, na rua do Heroísmo, a Mazal. Depressa se tornou notada a minha arte sendo convidado para outros trabalhos, ainda que esporádicos, noutras casas do ramo como a Ourivesaria Universal, nos Clérigos, ou a MacJóias em Campanhã.
Por voltas do Destino acabei por ser readmitido no Palladium, com as mesmas funções. Seguiram-se alguns prémios nos concursos das montras de S. João e também um artigo muito elogioso no Jornal de Notícias sobre um stand executado para a fábrica Silva & Sistelo.
Aí, para a apresentação de uma colecção de Verão, criamos um túmulo egípcio com múmias, com desenhos e hieróglifos nas paredes, com cacos de vasilhas de barro meios enterrados em montículos de areia, criando assim um ambiente muito original e que levou o jornalista a escrever que quando tinha perguntado o nome do responsável por tudo aquilo, este lhe foi negado como a desculpa: - O segredo é a alma do negócio!
Outro acontecimento importante para mim estava perto de ter lugar. Mesmo em frente ao Palladium, na rua Passos Manuel, estava em obras de remodelação uma das casas mais carismáticas da cidade no mundo da relojoaria, o Marcolino Relojoeiro.
Os irmãos Neves convidam-me para ficar encarregado de fazer as montras, com assiduidade e com o espírito aberto, o que me proporcionou fazer trabalhos que foram autênticas pedradas no charco, pois aquele meio era muito conservador, e o Marcolino fez história sendo uma referência para todos.
Um suíço, representante dos relógios Invicta, que estava de visita a Portugal, ao ver o meu trabalho na Mazal e apercebendo-se do meu potencial, aconselhou-me a visitar a Feira de Basileia onde se encontrava a nata dos ourives e marcas relojoeiras. Consegui que um ourives português que também expunha na referida feira, contratasse os meus serviços para lhe fazer a decoração das montras do seu stand. Foi o Manuel da Costa Santos que pagou pelo serviço, material incluído, treze contos quando a minha despesa tinha rondado os quarenta mil. Mas logo ali arranjei mais três clientes portugueses para o ano seguinte, e também para a Feira de Munique.
Fiz estes serviços durante três anos mais, aproveitando para tirar muitas ideias e aprender mais sobre técnicas de exposição que se revelaram fundamentais para o meu sucesso entre muros. Entretanto a situação no Palladium ia ficando confusa, com notícias que iria ser vendido, o que se veio a verificar.
O Marcolino ia de vento em popa e preparava-se para comprar a casa dos carimbos na porta ao lado para fazer uma ampliação e remodelação total, o que lhes colocava um problema: Maior, mais pessoal.
Assim eu candidatei-me a um lugar, com a consciência que não percebia nada do assunto, mas foi-me garantida uma aprendizagem e seguramente na Suíça. Mudei-me então e fui aprendendo o básico, continuando a fazer montras surpreendentes pela simplicidade ou pela ousadia.
O curso prometido aconteceu no Centre de Formation Horlogère em Lausanne, para onde partimos eu e o meu patrão Paulo Neves, com aulas sobre o conhecimento do produto (diamantes, pedras preciosas, pérolas e relógios), técnicas de venda e decoração de montras. Um mês e meio de aulas que começavam às oito da manhã até às cinco da tarde, com trabalhos para casa, mesmo ao fim de semana, que culminaram num exame final e entrega de diplomas (o meu foi-me entregue pelo sr. Raymond Weil em pessoa). Tive a satisfação final de ter obtido a melhor classificação daquele ano.
Regressamos mesmo a tempo da inauguração do novo Marcolino, um mimo de arquitectura de interiores, com a assinatura de Fernanda Lamelas, umas montras enormes onde eu poderia dar largas à imaginação, fazendo desta casa um lugar de peregrinação obrigatória para os amigos do ramo e de toda a concorrência.
Famosas, e quase um Ex-libris da Baixa, foram as decorações da fachada em sucessivos natais. Todo o interior era igualmente preparado para receber os clientes no maior espírito natalício, rendendo eu aqui homenagem aos irmãos Neves pela sua disponibilidade, até financeira, para me deixarem concretizar as minhas ideias.
O escorpião que há em mim, começou a provocar a coceira da insatisfação, do querer fazer algo diferente, de querer começar algo de novo. Aproveitando uma mudança no tecido social da empresa, os irmãos separaram-se comercialmente, avanço para uma nova etapa, completamente diferente indo trabalhar para uma das firmas com mais créditos firmados na nossa praça, a Tempus Internacional.
Desafio aliciante! Deixava de fazer montras no mesmo sítio e iria pôr as minhas capacidades, por todo o país, ao serviço de marcas como Omega, Longines, Tissot e também dum projecto que é um sinónimo de sucesso: A Boutique dos Relógios!
Equipa fantástica, desde o porteiro, cor escura, que sempre encaixou com classe e amizade as minhas piadas sobre os pretos (ou é negros que se diz?), passando pelo pessoal do escritório, companheiros da decoração, o meu chefe José Falcato, directores, até chegar à cadeira mais alta de onde o Sr. Salomão e a D. Cristina sempre me endereçaram gestos de amizade.
Dois anos mais tarde chegou aos meus ouvidos, por mero acaso, que a Diamantouro procurava um substituto para o meu amigo Adriano Santos (inesquecíveis as almoçaradas, os rojões, o sarabulho, o leite creme, na sua casa de campo na estrada para Entre os Rios) que, por motivos de saúde, ia abandonar o cargo de vendedor da Raymond Weil.
Eu que sempre admirara (e invejara) os vendedores que nos apareciam no Marcolino, nos seus fatinhos, nos seus carrinhos, entendi que era o Destino a provocar-me ou a abrir uma porta que sempre me estivera fechada.
Tinha a vantagem de conhecer a Patroa (fôramos colegas de turma no Liceu de Gaia) e de ela me conhecer profissionalmente há vários anos. Na primeira reunião marcada para o dia seguinte acertamos o contrato e eis me na estrada com uma mala repleta de relógios para trabalhar. Trabalho interessante, tinha a vantagem de conhecer quase todos os clientes, que não me abriam a porta com o mesmo sorriso que me dispensavam quando ia fazer as montras por conta da Tempus, mas sempre me trataram com simpatia.
A minha vida estava a ganhar a velocidade de cruzeiro, nunca tivera tão bons proventos, ia conseguindo manobrar os clientes, quando caem as Torre Gémeas. Tudo se modificou para mim desde essa hora fatídica. As vendas desceram e arrastaram as comissões junto com elas, a marca ia tomando um rumo e uma estratégia que não convencia a minha patroa até que desistiu dela, ficando eu sem relógios para vender. Vi de perto o espectro do desemprego, sendo salvo pela minha habilidade principal, a decoração de montras.
A firma sempre se debatera para conseguir encontrar alguém com o perfil adequado para a função e eu estava mesmo ali, disponível e já entrosado com o resto da equipa. Fiquei com a responsabilidade de criar montras para a Breitling ou a Girard-Perregaux, marcas de topo que iam exigir de mim o meu melhor, mas acho que tenho dado conta do recado, até hoje.
Se antes fiz uma referência elogiosa à equipa da Tempus não posso deixar de fazer, com toda a justiça, o mesmo à equipa da Diamantouro. Começando também pela recepção, mas aqui com uma cara muito mais bonita (que me perdoe o me amigo lá de baixo), passando pelo serviço pós venda liderado pelo Aurélio e Sofia, pelo pessoal do armazém, sempre solícito, pelo Dr. Pedro, o maluco do Zé Carlos, pelo departamento comercial com a Anabela a despachar os meus assuntos, pela equipa de vendas que se esforça para levar isto adiante, a menina Olinda que me reserva os hotéis e me desenrasca quando tenho problemas com o computador, a contabilidade que processa o meu ordenado, o departamento jurídico e financeiro que dá muitas dores de cabeça à Dr. Cristiana e à Susana Nina, pelo Adalberto, pelo meu chefe o Rui Guimarães, fechando esta ode com um elogio sincero à minha amiga Goreti que é um exemplo de coragem e força. Bem hajam!
Como um Déja vu, hoje sinto o mesmo que sentia o humilde porteiro que abria solícito a porta dos Pintos. Isto vai melhorar!