O Liceu de Gaia


Levado pela mão duma amiga que conheci na praia das Pedras Amarelas cheguei ao Liceu de Gaia, estabelecimento de ensino com turmas mistas, fugido do Alexandre Herculano, liceu só para rapazes o que nos obrigava a enfrentar as ordens de: - Circular, circular! - que nos eram atiradas pela bófia na hora da saída em frente aos portões do Rainha Santa Isabel, o liceu feminino ali ao lado.
Construção moderna, em contraste com o já referido Alexandre e muito mais com o Colégio, bastante acolhedor e com uma sala polivalente, um conceito inovador na altura em que se faziam todos os entraves para as pessoas não conviverem nem trocarem ideias, promete ser o palco de dias bem passados e sã camaradagem.
Puro engano, pois logo no dia de percorrer os olhos pelas pautas para saber que ficara colocado na Turma F com o número 42, ouço a voz de escárnio de um crioulo com riso miudinho que me atirava em jeito de desafio:
- Que fazes aqui ó moço? Vai-te embora caralho!
Eu, enfiado no meu blusão cor de laranja, comprado nos Porfírios, com um bolso grande à frente, o que me tornava a coisa mais parecida com um canguru ou com um marco do correio e que nunca larguei durante todo o ano lectivo, estranhei mas soube mais tarde que era uma maneira peculiar do Adérito me dar as boas vindas apesar de uma certa desconfiança.
Primeiro dia de aulas e eu lá me apresento, meio envergonhado mas feliz por estar ali e a pensar o que poderia fazer para me infiltrar mais depressa numa turma que já vinha unida de anos anteriores.
A ocasião proporcionou-se quando o professor de História falou nos deveres que eram devidos pelos alunos tendo eu, no meio de uma turma que não me conhecia, ripostado que havia também deveres dos professores para com os alunos. Com a turma toda em suspenso fui instigado por ele a dar um exemplo. Atirei-lhe com a teoria que os professores não deveriam chumbar os alunos porque estavam a praticar uma fraude. Perante a sua perplexidade expliquei que ao fazê-lo estavam a aproveitar-se da ignorância dos alunos para os prejudicarem. O professor nunca mais me pôde ver mas ganhei instantaneamente a admiração e a confiança dos meus colegas de sala de aula, ultrapassando assim um problema que à partida me parecia duro de roer.
A admiração atingiria o auge pouco tempo depois quando, em pleno polivalente, estávamos quatro ou cinco (o Adérito, o Guerra, o Rui Guimarães estavam de certeza) em amena cavaqueira e passou um cavalheiro por nós, deu mais meia dúzia de passos e voltou para trás interpelando o Adérito:
- O senhor não me cumprimenta?
Meio atrapalhado o Adérito titubeou mas não respondeu o que fez o que o cavalheiro me interpelasse a mim:
- O senhor não acha que o seu amigo me devia cumprimentar?
A resposta saiu rápida e certeira :
- Acho que não! Nós já cá estávamos, o senhor é que chegou.
Ruborizado e surpreendido o fulano perguntou se eu sabia quem ele era ao que lhe foi respondido que não, pois só estava à poucos dias naquela escola. Gesticulando esbaforido atira:
- Eu, José Vitorino da Rocha, sou o Reitor deste liceu.
Mal ele tinha pronunciado o nome já a minha mão tinha agarrado a sua, à laia de cumprimento, ao mesmo tempo que respondia:
- Silvério Calçada, muito prazer!
Vociferando qualquer coisa entre os dentes rodou sobre os calcanhares e desapareceu rumo à secretaria.
Foi o golpe definitivo na quebra do gelo, se porventura ele ainda existia, no relacionamento com os meus companheiros.
O meu colega de carteira na maior parte das disciplinas era o Guerra, que não ficava a dever nada, em maluquice, em atrevimento, a este vosso amigo.
Juntos éramos o diabo à solta, que o diga a nossa mui querida professora de Filosofia, Filomena Tacha, que desesperava com as tropelias destes dois alunos sentados logo na carteira central da primeira fila.
Todas as aulas inventávamos qualquer coisa que a punha doida de riso ou de raiva. E quando uma vez se virou para mim e disse que já não sabia o que me havia de fazer, eu pedi-lhe que me fizesse um casaquinho de lã pois estava muito frio. Mas a cena mais engraçada foi quando ela nos explicava os teste de Pavlov e eu e o Guerra dissemos que conhecíamos um teste de equilíbrio. Surpresa, perguntou como era, ao que nós respondemos que teríamos todo o gosto em aplicar-lhe o referido teste, ao que ela anuiu.
-- – A Setora fica em pé com os pés bem juntinhos e vai passar, com os olhos abertos, a sua mão esticada entre as minhas, que estão separadas por uns quinze centímetros, dez vezes. Depois fecha os olhos e continua a tentar passar a mão o maior número de vezes com os olhos fechados. Uma boa pontuação será qualquer coisa acima das cinquenta vezes.
Colocada em posição, iniciada a contagem e fechados os olhos aos dez, começam a sair pela porta fora os mais avisados e mais atrevidos ficando no lugar os mais temerosos ou as alunas de vinte como a Andrelina.
Ela ia perguntando se ia bem ao que nós respondíamos da porta:
- Excelente, excelente!
Mas o burburinho já era tal que ela desconfiou e abriu os olhos. Já ia nos trinta e muitos.
Recordo as aulas de Geografia, que eram dadas noutra sala, sempre que ouço o Rui Veloso cantar: - Sei de cor o teu cabelo, sei o champô a que cheira... Aí eu tinha o privilégio de ficar logo atrás da Bichete, talvez a mais bonita da nossa turma, olhos azuis, cabelo louro que eu ia enrolando com um dedo atrevido, o que a levava a voltar-se para trás com um sorriso branquinho e com aqueles olhos grandes e brilhantes, e dizer desconcertada: - Oh! Silvério!
Havia outra colega que quando eu me voltava para trás e a um sinal meu levantava mais um pouco a saia, já curta, da sua companheira do lado fazendo-a resmungar um Ah! de surpresa disfarçada.
Uma referência ao nosso colega Macedo que chegou à turma por altura da Páscoa, vindo de outro liceu de uma zona do interior ou litoral afastado.
Daqueles rapazes (sim, éramos todos rapazes ainda) que passavam despercebidos, apesar do borbulhame de uma puberdade ainda em efervescência, não fosse a sua desenvoltura nos testes, não só pelas respostas certas que revelavam conhecimentos acima da média, mas pelo humor, tipo Vilhena, com que floreava e adornava os textos que enchiam sempre várias páginas. Lembro-me de uma pergunta num teste de Geografia sobre a pesca em que ele respondeu qualquer coisa como: - “De uma maneira geral pode dizer-se que tudo pesca minha gente! Fez mais à frente alusão ao diferendo que opunha a Espanha e a Inglaterra na então chamada “ Guerra do Bacalhau” respondendo que por causa do nosso fiel amigo andava tudo à estalada.
No polivalente havia um balcão onde se podia comprar um bolo, umas sandes, ou uma garrafa de sumo ou gasosa, ainda não havia coca-cola. Atrás do balcão tinha a atender um moça de corpo generoso, a Fatinha, ares de sabidola e que encaixava sem dificuldade uma graça brejeira ou atrevida. Muito me ri com ela.
E havia o Ginásio, esse lugar que me atraía, com os seus cestos de basket e onde eu podia tomar um banho completo, bem diferente dos banhos às prestações que me proporcionavam as bacias lá de casa. Já nesta altura lavava a cabeça todos os dias de manhã com água fria e sabão Clarim. O cabelo preto ficava brilhante e sedoso o que o tornava uma atracção para a minha amiga Rosa Margarida, aquela que casou com o Luís louro, e que se entretinha, nas escadas que davam para o pátio ao lado do ginásio, a fazer-me e desfazer-me trancinhas e caracóis com um carinho e uma cumplicidade que me fazia desejá-la mas nunca tive a sorte de ter passado para além da amizade. Se calhar foi por isso que, ao fim e ao cabo escolhi uma Margarida primeiro e uma Rosa depois para partilhar a maior parte de minha vida (risos).
Mas voltemos ao ginásio que era gerido pelo contínuo, nosso amigo, Severo. Chegávamos a fazer apostas com ele para ver quem encestava mais e melhor. Tanto treino haveria de dar os seus frutos no campeonato interturmas, onde, como já vos contei umas folhas atrás, fomos campeões vestindo umas camisolas brancas pintadas por nós que ostentavam a sigla F7F, ou seja Fantástico 7º F com um resultado inusitado o nos leva a perguntar se o guarda-redes jogou de costas.
Havia outros jogos que despertavam o nosso interesse como os campeonatos de “escanhoado”, uma espécie de torneio de matraquilhos jogado no café Angola ou no Metrópole, em rápidas saídas nos intervalos ou em atrasos na chegada às aulas. E lá estavam os superdotados em fintas “tic-tac” ou em “tolinhas” ou em “levar á merdinha” reunidos naquilo que nos elevava a adrenalina como hoje fazem as consolas de jogos Nintendo ou Xbox.
Não posso esquecer de deixar aqui uma referência ao “Trinca Cevada”, um jogo que jogávamos no Polivalente e que punha em confronto duas equipas. Uma fazia uma cadeia, todos agarrados pela cintura, dobrados para a frente e com o primeiro da fila encostado a uma parede. Os elementos da outra tomavam lanço, corriam e lançavam-se num voo por cima da fila já formada tentando encavalitar-se o mais à frente possível para dar espaço para os que vinham atrás, quanto mais peso melhor, pois o joga acabava quando a cadeia se desmanchava. Era uma risota, nós já uns homenzinhos com uma brincadeira daquelas.
Mas mais interessante do que isso era o que nos levava a responder quando nos perguntavam:
- O que vais fazer no intervalo?
Muitas vezes a resposta era:
- Vou ver a Estela!!!
O nome diz tudo! Uma estrela que iluminava qualquer sítio por onde passava e, como uma estrela cadente, deixava um rasto de beleza que a todos envolvia em suspiros de admiração. Também eu deixei escapar muitos e fui-me aproximando até conseguir cativar a sua atenção e ser companheiro frequente nos intervalos, fazendo-a rir com as minhas piadas e traquinices.
A amizade floresceu e cheguei a ser convidado para uma festa de aniversário em casa dos seus pais, ao Bairro dos Cedros. Hoje passados trinta anos continua uma mulher radiosa e quando nos cruzamos em qualquer lado (a última vez foi no Norte Shopping há uns meses atrás) trocamos saudades de um tempo que não volta mais mas que faz parte da nossa riqueza, da nossa herança.
Sempre achei que ela era a mulher mais bonita que tivera o prazer de conhecer pessoalmente, mas não fui concerteza o único. Sei pelo menos de uma amiga desses tempos que baptizou a sua filha de Estela em homenagem à amiga do liceu.