O Pai

Cabeceiras de Basto, freguesia de Rio Douro, Domingos João Calçada. Infelizmente são poucos os dados que disponho para fazer uma introdução mais rica para quem me desejou e fez nascer. Como já sabeis fiquei “órfão” aos oito meses e dois dias, bem contados pela Mãe que ficou “viúva” e sempre respeitou a memória do ausente, e que, apesar da desilusão e da solidão forçadas, incutiu neste vosso amigo amor e respeito pela figura paterna. Notícias a espaços iam dando conta do seu percurso em terras de Santa Maria, das dificuldades e provações que todos os que emigrantes sofrem na carne em tempos de adaptação e afirmação, das melhorias de vida e da consolidação do seu futuro.
Lembro das cartas que começou a mandar em meu nome: um envelope de papel finínho debruado com umas riscas coloridas que, juntamente com um aviso “por Avião”, identificavam as missivas que deviam atravessar o Atlântico de maneira mais célere.
Invariavelmente começavam com um Querido Filho, para terminarem num Do teu Pai com Amizade, deixando pelo meio umas referências aos meus estudos e recomendações para a minha mãe. Eu tentava descobrir, no meio das palavras, o Amor que, pensava, me era devido como filho abandonado mas nunca o encontrei mesmo nas cartas que por vezes se alongavam por duas folhas, três ou quatro páginas.
Recordo-me que comecei admirá-lo numa outra perspectiva quando por volta dos onze, doze anos, comecei a ouvir frases como: - Vais ser como o teu pai, malandreco, um terror para as mulheres, ai esse sinal, etc...
Senti nessa altura que o meu pai poderia ser a minha força inspiradora, libertadora, e que ser parecido com ele num aspecto a que eu dava, já na altura, tanto valor, me aproximava de uma maneira nunca antes experimentada dum homem que passei a admirar e querer conhecer.
E conheci. Teria por volta de quinze anos quando me comunicaram que ele voltava pela primeira vez a Portugal depois de uma viagem, desta feita de avião com várias escalas , que os aviões da altura movidos ainda a força de hélice tinham que reabastecer para levar de vencida tão longa distância.
Ele esperava-me no largo em frente ao colégio atrás de uma daquelas tílias que, em noites de Junho, espalhavam no ar a fragrância intensa das suas flores -que ainda hoje guardo na memória como uma daquelas pequenas coisas que nos dão um prazer tão simples quanto genuíno- vestido com ar austero, de terno como dizem os brasileiros, presumo que nervoso como eu acabado de atravessar o amplo portão que se abrira para me deixar ir ao encontro de um desconhecido.
A primeira impressão foi um vazio para quem espera no primeiro minuto sentir-se diferente, sentir-se filho, um pouco como quando somos pais e no primeiro minuto não sentimos diferença nenhuma em nós, por, em si só, termos nos braços um fruto do nosso sangue.
Para alguém que vivia as primeiras fases da libertação juvenil à escala mundial, nada pior que um pacote de sobriedade, de atitude cinzenta, de ares de respeitabilidade poeirenta que me era entregue ali debaixo da frondosa tília. Eu esperava uma figura redentora que me libertasse, que me expurgasse de tantos anos de reclusão forçada na pele de um “interno num colégio de padres“, me recompensasse da clausura vivida nos anos passados, das provações sofridas, mas em vez disso recebi um pai.
Seguiram- se alguns passeios, almoços em família, ele na figura do filho pródigo que regressa a casa com a vida encaminhada, triunfador adorado por irmãs e sobrinhos, eu na figura de quem deveria estar agradecido por poder desfrutar daqueles momentos solenes do reencontro.
Mas, caros amigos, o meu sentimento era outro, achava a Vida madrasta por uma vez mais afastar o meu pai de mim, agora não pela distância mas pela diferença de opiniões, de gostos, de interesses. E ele lá partiu de novo deixando-me com um incompreensível vazio no coração, com uma sensação de perda, de derrota.
Ao longo dos anos fui aprendendo a conhecê-lo melhor, a compreender que ele próprio era fruto de uma vida que nem sempre fora feliz, a admirá-lo por ter dado a volta por cima, por ter construído outros caminhos e a perdoá-lo, na certeza que só longe dele poderia ser quem hoje sou e é este que eu quero ser.
Outros regressos se seguiram espalhados no tempo, as nossas relações tiveram altos e baixos, fomo-nos encaixando um no outro, cedência aqui, cedência ali, de maneira a podermos apreciar aquilo que cada um tinha de melhor para dar.
Mas as melhores oportunidades para o conhecer realmente foram as minhas duas viagens ao Brasil, duas vezes dezassete dias instalado em sua casa a viver o seu dia a dia no seu habitat natural. Aí ele era mais ele, mais verdadeiro, mais humano, mais decifrável e compreensível. Vi a sua relação com a família, com os meus irmãos, com os netos, com os amigos, com os clientes, com os empregados e compreendi que ele era uma pessoa boa embrulhado também pelo turbilhão da Vida.
Dele recordo com saudade o sentido de humor explorando ao máximo a sua costela carioca e que fazia dele, por vezes, um poço de cultura e saber da vida, que
surpreendia os menos avisados, e o seu gosto pela vida e pelo trabalho.
Fiquei deveras impressionado com a sua estoicidade perante as sucessivas doenças que iam minando a sua saúde e bem estar começando nas pedras nos rins, passando por operações dolorosas para o libertarem dos males da bexiga e da próstata, de múltiplas infecções pós operatórias, dos problemas cardíacos, dos diabetes, eu sei lá...
Um último encontro estava marcado para Dezembro de 2001. Dia sete desembarca combalido em Pedras Rubras depois de uma extenuante viagem com escala em Madrid (para poupar uns tostões e manter até ao fim estatuto de pessoa previdente e calculista viaja pela Ibéria), com o invariável terno de viagem - seria impensável usá-lo no Rio de Janeiro por causa do calor - um abraço, uma pergunta: - Então paizinho como vai?, uma resposta: - Agora, filho, já estou melhor!
Uma viagem para Vila do Conde, descarregar as malas em casa emprestada por um amigo e sócio de longa data, um jantar no restaurante da esquina, ele só comeu sopa, uma e outra graça trocados com o dono do restaurante, sempre com o humor à flor da pele, um beijo, um - Até amanhã cansado mas sorridente, um último - Adeus!
A má notícia chega ao fim do dia seguinte em forma de telefonema angustiado:
- Silvério vem depressa que o teu pai foi hospitalizado de urgência. Os quilómetros que separam Ermesinde de Vila do Conde passaram rápidos mas não tão rápidos como os flashs que estoiravam na minha cabeça como uma sessão de
slides em que revia todos os parcos momentos que vivemos juntos.
À porta do hospital a confirmação dos piores receios, chegara tarde, ele fechara os olhos para sempre não sem antes dar uma prova final do seu intocável sentido de humor. Ao descer do táxi que o levara com a dor fatal, encara o hospital de cima abaixo e pergunta num misto de desdém e angústia:
- Então é aqui que eu vou morrer?
Dez minutos depois estava morto!
As palavras de consolação do médico chefe da equipa de urgência que o recebeu são quase sorridentes por ter assistido a uma morte tão simples, tão despojada:
- Não fiquem tristes porque ele não sofreu, apagou-se simplesmente com sobriedade, com dignidade. Até nós médicos ficamos felizes quando assim acontece.
O velório marcado para a capela mortuária do Mosteiro de Vairão. Sou o primeiro a chegar, manhã fria de Dezembro, sozinho, capela ainda fechada, ramo de flores na mão, aguardo a chegada do carro fúnebre que transporta o seu corpo frio. Caixão pousado nos tripés, tampa retirada, um último arranjo nas rendas, um - Até logo, que temos outro enterro - e eis-me no meio dum cenário sombrio e
gélido frente a frente com a situação mais dolorosa da minha vida.
Um primeiro olhar a medo, nunca antes tinha estado sozinho com um morto, um outro agora mais abrangente para verificar se estava tudo em condições, um jeito no nó da gravata que o colarinho desapertado da camisa torna difícil de centrar, um outro jeito para pôr os pés juntinhos mas que a rigidez da morte torna impossível, uma festa na sua cara gelada, um arranjo nos cabelos brancos para ficarem alinhados e pergunto-lhe:
- Porquê? Porquê, depois de uma vida sempre longe vieste morrer à minha porta? Porquê eu? o filho a quem deste menos carinho, menos dinheiro, menos presentes, menos presença.
Soube depois que já partira do Brasil com a intenção de morrer em Portugal e com o desejo, que eu por mal entendidos não soube satisfazer, de ser enterrado
perto da sua mãe, minha avó, no cemitério de Paços de Sousa.
Lembro muitas vezes a frase que me disse no aeroporto (Agora, filho, já estou melhor!) tentando convencer-me que era o facto de me poder ver uma última vez que o fazia sentir-se aliviado e feliz, quem sabe expiando todos os pecados e pedindo perdão pelas suas faltas para comigo.

PS: Escrevi este capítulo, como se diz em gíria popular, duma penada. Uma tarefa tantas vezes adiada tornou-se fácil, fluente e, confesso, libertadora. O meu sincero Obrigado à minha amiga Goreti cuja sentida e esclarecida dor me deu ânimo para levar de vencida esta etapa.