A Terceira Infância

A Mãe zelosa procura um futuro um pouco melhor para o órfão de afecto de Pai. Na Conga (onde trabalha na altura) as trouxas, os bolinhos de bacalhau, os acepipes confeccionados por mão habilidosa atraem gente de vários quadrantes da vida activa e profissional e proporcionam uma fonte de informações que, com mais favor menos favor, indicam o caminho: o Real Colégio de Nossa Senhora da Graça dos Meninos Órfãos do Porto.


O tamanho impressionou.
Eu, puto gordo e anafado que comia ao pequeno almoço seis pães quatro cantos com manteiga e uma xícara de café - leite nem cheirá-lo, desde que ouvi uma história em que as leiteiras mijavam no leite para encher a vasilha - o que tornava esta a melhor refeição do dia (em comparação com os menus de bofe e baço, bacalhau fino com pele cinzento mole que volta e meia, às escondidas, voava para debaixo dos móveis atraindo uns ratitos até simpáticos mas que deixavam os adultos em alvoroço, rogando pragas e armando umas caixas cor de rosa esquisito, bocado de gordura de toucinho na ponta de um arame com força de mola que deveria apertar o pescoço do guloso que enfiasse o focinho na ratoeira),

levanto o olhar para poder enquadrar na totalidade o meu novo lar. Aspecto austero, laivos de mosteiro ou retiro, mesmo colado ao cemitério, uma profusão de janelas alinhadas em fileiras.
Numa mão uma mala com contrafortes nos cantos, comprada na rua do Cativo, onde bem dobrado se acomoda o parco enxoval, escolhido entre os pregões e os calões da rua Escura, com todas as peças identificadas dum 38 bordado em linha vermelho vivo. Na outra, uma cesta, asa pequena e frágil, ferragem mais tarde reforçada com um aloquete, que serviria para, nas visitas semanais de Segunda-feira, reabastecer de carinho na forma de pacotes de manteiga, chouriços, queijo e com sorte uma barrita de chocolate ou um pacotito de cinco bolachas baunilha que depois de abertas sempre davam dez.
O primeiro ano de adaptação aos dormitórios com camas de ferro dispostas em quatro filas, biombo branco lá ao fundo onde se reserva o supervisor; ao grande refeitório com mesas pesadas, comida saída dos grandes panelões para os pratos de alumínio; aos horários rígidos, às filas, aos silêncios, à missa diária, passa num ápice, no turbilhão de tantos amigos novos, carentes como eu de carinho e conhecimento.
Repetida a quarta classe, os dois exames de admissão ultrapassados com à-vontade contradizem a opinião do professor coleccionador de coelhos. O futuro alarga-se em novos livros, na passagem do dormitório dos pequenos para o dos médios, em novas aventuras e traquinices que por vezes fazem descer em gesto seco e rápido a régua dos cinco olhinhos que o padre Bifes

segura em mão sapuda enquanto a cara vermelha, de raiva ou de prazer, mal segura uns olhos esbugalhados que tentam, em vão, ser mais duros e convincentes que a pancada acabada de cair na minha mão.
Entretanto, levada por uma arteriosclerose, a Madonna foi a enterrar no meio de grande choro e grito. A carpideira mor, pelos estertores e revirar dos olhos, assumiu dias mais tarde o controlo da casa da Madonna e dos tempos que eu passava no quarto com papel de parede, cada vez mais desbotado, em fugazes domingos ou nas férias grandes.
Cedo lhe comecei a chamar Mamã, não por substituir a Mãe que tardava em chegar a casa por culpa do horário das casas de pasto por onde ia passando, mas por ser assim tratada com carinho pelos atletas da Secção de Natação do FCP que, em dia de treino, desciam em grupo a Corticeira, com um lanche à base de quartos de sêmea, para atravessarem o rio para o lado da Praia dos Tesos. Aí, depois de trocarem de roupa em velhas cabanas de madeira, preparavam nas águas do rio, entre duas jangadas unidas por filas de pequenas bóias de cortiça, as próximas provas do calendário. Em tempo de férias eu seguia-os para os treinos e para as provas até eu próprio ter perdido o temor à água e me tornar em atleta do FCP primeiro e do Fluvial depois, sem grandes resultados desportivos devo confessar.
A Mamã - Luisinha de seu nome - trouxe com ela um filho já homem, um segundo marido que por sua vez trazia na sua bagagem uma filha Fernanda - dois, três anos mais velha que eu.
A falta de espaço levou a Fernanda a dormir na minha estreita cama de rede e colchão de folhelho já que a maior parte do tempo eu estava ausente no Colégio. E eu, quando voltava, ia dormir na cama da minha Mãe, no mesmo quarto. Como ela vinha sempre tarde, dava para fazer incursões à outra cama, ou não fosse eu o seu legítimo proprietário, para, em conversas em surdina por baixo dos lençóis, ir entendendo coisas que no Colégio nunca iria aprender e surpreender-me com o primeiro beijo que boca húmida me oferecia e que eu, tão atrapalhado, não soube merecer.

Nesta altura nasce o meu gosto pela desenvoltura em sala de aula, alicerçada em sã competição com o Castro ( hoje professor de Matemática no Secundário) com quem alternava o primeiro lugar no Quadro de Honra. Os primeiros versos em redacção sobre as árvores e o primeiro soneto entregue com mão trémula e envergonhada à recepcionista da Casa de Saúde da Avenida dos Aliados - Céu de seu nome, moça roliça, sorriso manhoso - onde, aos fins de semana, visitava amigo do Colégio a quem serraram cinco centímetros de uma perna para equilibrar o que já faltava na outra por desarranjo no crescimento por causa da poliomielite.
Vêm-me à memória algumas figuras, companheiros de brincadeiras simples como o pião, o espeto, as caçadinhas (que em dias de chuva eram organizadas em corredor muito comprido e estreito para tanta folia), o futebol.
Ah! O futebol!!! Que aos fins de semana se transformava em jogo oficial com equipamento à maneira, cores vivas e alegres que nos despertavam da letargia cinzenta dos dias passados debaixo do controlo organizado de tão complexo formigueiro. Pelo porte alargado era-me concedido o lugar de guarda-redes e o nome de Barrigana, misto de homenagem ao outro que defendera as cores do Porto e á minha barriguita arredondada, já não pelos pequenos almoços, mas por pratadas de massa macarronete com tiras de atum escuro, batatas estufadas com leves resíduos de carne de terceira, que tornavam os dias de arroz branco com um ovo cozido num acontecimento a desejar ver repetido brevemente.
Talvez para distrair o nosso espírito crítico em relação ao que encontrávamos nos pratos de alumínio eram servidas, depois da oração de acção de graças, páginas de cultura avulsa que, do alto de um estrado, alguns alunos, eu incluído, liam em voz alta para submissa plateia.
E, entre duas garfadas, desfilavam as aventuras do Miguel Strogoff, do capitão Nemo, do professor Lidenbrock, do Phileas Fogg e o seu criado Passepartout. Nada melhor que Júlio Verne para libertar, mesmo que por instantes, o espírito daquela rapaziada presa entre muros de saudade e resignação.
E lembro o Albano, o Nelson corcunda, o Azeitonas ( apelido por via de ter repetido o nome de família: João Oliveira de Oliveira), o Ratinho (por dificuldades respiratórias parecia um gato a ronronar), o Serafim, o António Lopes (hoje médico no Hospital de S. João) e o seu irmão Jaime (artista fabuloso que nos trabalhos de desenho e pintura a todos espantava com seu talento e que depois de muitas bofetadas da Vida conseguiu ser professor de EVT em Peniche), o Tacto ( pela insensibilidade com que jogava descalço e pelos bicos que dava nas bolas, contando no seu palmarés vários estouros), o Zézinho e o Moreira - que mais tarde formariam comigo e com o padre Rocha o Ritmo 70 - e tantos outros cujos nomes se esfumaram com o passar dos anos, ou que ainda lembro mas não quero aqui fazer uma lista exaustiva tipo lista telefónica.


Do lado dos educadores, além dos já citados padre Bifes e padre Rocha, uma palavra para recordar o padre Alberto (que mostrou muita coragem ao assumir a sua condição humana e desistir de uma carreira eclesiástica, condenada ao celibato, para constituir família com a mulher que lhe deu pelo menos duas filhas); o Apache, professor de desenho e trabalhos manuais que devia o seu apelido ao cabelo teimosamente espetado para cima, que um dia me ofereceu 6 reguadas, para sobremesa, com a tranca da porta do refeitório (metro e vinte de comprido, cinco ou seis centímetros de grosso) por eu ter invocado o nome de Santo Nome de Deus de Macau e ele ter entendido que eu lhe chamara macaco; o Fininho seminarista, figura esguia que a batina preta tornava ainda mais esguia; o Tolinhas - padre que combatia as dores de cabeça com emplastros de cascas de batata enrolados à altura da testa; o querido padre Maffini, figura de rara delicadeza que todos vimos agonizar no seu leito em vésperas de Extrema Unção, dando a sensação que nunca estaríamos tão perto da Santidade como naquela ocasião, e outros que não conseguiram escapar à traição da memória.

E há outras lembranças soltas, tão insignificantes mas que permanecem.
O bater das palmas para nos acordar às seis e meia da manhã, barulho que o Fininho substituía pelo estalar do cinto dobrado que de repente ele esticava.
Nas manhãs de Domingo ou Feriado o alerta era dado pela banda sonora do Ben-Hur. A parede do corredor que em dias de chuva dava choque e que nós aproveitavá-mos para fazer cadeias humanas até o último tocar nas orelhas dum mais incauto que levava um estremeção; descer os compridos corrimões (desde o segundo andar até cá em baixo) em posição de amazona - sentados de lado - sem cair nas curvas; ensebar as bolas de futebol, para torná-las impermeáveis, junto do sapateiro Vilela; o barbeiro, figura odiosa pelo aspecto - parecia um bajulador nazi - mas também por nos aviar com cortes de cabelo à tigela; o dia da matança do porco em que corríamos atrás do pobre animal minutos antes do golpe fatal.
Houve um ano em que fiquei encarregado da sacristia e teria de tratar dos paramentos e de todos os detalhes inerentes à celebração da Eucaristia. Lugar de responsabilidade, que me dava um certo estatuto entre os petizes, mas que me trazia tarefas adicionais sem nenhuma recompensa. Minto. Tinha a recompensa de poder beber, às escondidas, o vinho da missa, directamente da garrafa ou escorropichando o que sobrava nas galhetas. Quando chegavam hóstias novas era um festim. Estaladiças, com ou sem manteiga surripiada da dispensa, ou então torradas na chama de uma vela. Tinha também o privilégio de contactar com as beatas que enfeitavam a igreja nas datas festivas. A maior parte da vezes era eu que assistia o padre na celebração. Nos primeiros anos que estive no colégio a Missa era rezada em latim. Dizia cheio de fé e convicção aquelas palavras que eu não entendia mas que sabia pronunciar de cor. Mais tarde passou a ser em Português e por vezes havia missa solene cantada dos dias de grandes festas como o aniversário de D. Bosco. Aí a rapaziada esmerava-se e punha toda a força nas gargantas para debitar o Credo e a parte em que cantávamos “Ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras e subiu aos Céus”era o climax.