Prefácio

Dia 1 de Novembro, a data não engana : Escorpião! Os nativos deste signo são impulsivos, dão muito valor ao sexo, são capazes de destruir tudo para reconstruir tudo de novo, são vingativos, são dados a extremos. Não sou adepto do Zodíaco nem dos Horóscopos nem das coisas que tendem a querer parecer fora do normal! Paranormal? Espíritos? Alma?... Não! Obrigado. Mas devo confessar que me sinto lisonjeado que tenham pensado num signo com estas características para a minha data de nascimento: assenta-me que nem uma luva.
A sorte de ter nascido num dia feriado foi sempre anulada por este dia ser dedicado a recordar os mortos. É difícil ser feliz num dia em que todos, por razões legítimas, estão de lágrima no olho a homenagear com saudade os que já partiram. As visitas aos cemitérios foram desde sempre parte do itinerário dos meus aniversários. E juro que não é confortante. Acho que estes factores moldaram a minha personalidade e a minha maneira de estar no mundo : procurando sempre compensar o que de menos bom me oferece a própria vida.
As palavras que vou escrever dedico-as aos meus filhos, na esperança que me conheçam um pouco melhor, às mulheres que amei e me fizeram feliz ou infeliz e a todos os amigos e amigas que ao longo destes cinquenta anos me deram a mão e o seu conforto e que, de algum modo, traçaram o meu caminho.
Não tive freio na caneta, por vezes a escrita é nua e crua e a linguagem roça os limites da decência.
Que me perdoem os mais sensíveis.

O Nascimento



Primeiro dia de Novembro de 1953. Domingo, cinco menos um quarto de uma tarde chuvosa. Um último esforço depois de uma corrida de taxi para chegar a tempo à Maternidade. Saio por fim do ventre duma mulher madura de quarenta anos. Deixou as terras de Lamego há trinta para servir em casas mais ou menos abastadas. Fruto de um relação não oficial e não abençoada nem por Deus, nem pela família, com um Sorriso Maroto que veio das Terras de Basto...
Cheguei! Bebé sossegado, enchia de orgulho aquela ajudante de cozinheira que neste seu primeiro e único rebento depositou, desde a primeira hora, todo o seu Amor.

A Primeira Infância

Oito meses e dois dias depois do meu primeiro choro, o Sorriso Maroto
embarcou no Santa Maria, paquete de luxo para a época e que viria a ser o palco de um dos episódios mais carismáticos da luta contra o Estado Novo, para atravessar o Atlântico e desembarcar no Rio de Janeiro pai de uma menina mais velha que eu e com casamento prometido com alguém que viajara desde Vila do Conde.
Entretanto, no seu quarto alugado em casa de uma Madonna que tinha nos seus braços dois netos ilegítimos do ex-presidente Bernardino Machado,
a ajudante de cozinheira dava o seu melhor para levar a cabo a dura tarefa de criar sozinha este difícil rebento, resistindo até a uma tentativa de adopção por parte da família do embarcado. Quarto pequeno mas com papel de parede, coisa rica naqueles tempos, serventia de cozinha e casa de banho.
Mundo austero este que eu respirava. Saía cedo, sete e meia da manhã para casa de tia, avó e três primos, um pouco mais velhos. Casa numa ilha igual a tantas outras que proliferavam na cidade para dar resposta ao crescente fluxo de proletariado que procurava no aumento da indústria um futuro sempre incógnito.
Casa ou casinha de bonecas. Quarto e sala, quadrados pequenos com mobília apertada; uma cozinha mais apertada ainda; um wc lá ao fundo da ilha depois de subir as escadas. Mas com muito carinho para encher o meu dia que se estendia até às dez e meia da noite, hora a que a pobre Mãe regressava da beira do fogão para procurar o seu filho com Pai ausente e levá-lo, na protecção do seu xaile, uma hora de caminho de Verão ou de Inverno, até à cama para um sono rápido: amanhã é outro dia de trabalho.
São destes tempos as primeiras recordações mais desembaciadas. Será pelo cérebro mais expandido, será pelas primeiras fotos de família tiradas pelo vizinho da tia (fotógrafo profissional, daquelas máquinas caixote com tripé, pano preto onde ele enfia a cabeça para focar uma imagem invertida) que tinha uma filha que, por ser tão bonita, todos queriam para companheira na hora de brincar aos médicos ou aos papás e mamãs.

E algumas dessas lembranças são bem estranhas: uma prima que adorava chupar o tutano dos ossos do frango, outra que gritava pelo pai acabado de partir levado por uma tuberculose violenta, a figura fina da avó já dobrada pelo peso dos anos passados numa outra cozinha.
A festa de S. João na ilha enfeitada de papéis coloridos onde, com braços gulosos, queria levar a dançar a filha do fotógrafo; o carro do fotógrafo, velha banheira preta saída de um filme de gangsters com embaladeiras proeminentes onde os garotos se acotovelavam; as primeiras imagens da caixa preta donde saltavam o Rintintin, o Mascarilha, a família Bonanza,
em tardes domingueiras passadas na Associação dos Tuberculosos na rua do Bonjardim; os pirolitos
com a sua inconfundível garrafa de empurrar a bolinha de vidro para dentro até ouvir o pffff do gás.
Os serões de Domingo com o pequeno rádio transístor a debitar a Resenha Desportiva enquanto a cabeça da tia Teresa teimava, pela força do cansaço, cair em movimentos bruscos para a frente para logo se erguer levantada pela responsabilidade de tomar conta do puto que lhe punha os nervos em franja com o berreiro que fazia quando chegava a hora das refeições. Pelo que dizem eu era mesmo um pestinha!
A festa do meu quinto aniversário com direito a bolo, velas e tudo; as montras dos bazares Londres e Paris, paragem obrigatória no regresso nocturno a casa, onde os sonhos cabiam nas manchas que o nariz e os dedos deixavam nos vidros. Como me lembro, ainda hoje, daquele triciclo verde clarinho, réplica fiel da Vespa!

A Segunda Infância

O aproximar da idade escolar leva a uma mudança de hábitos e de rotinas. A casa da tia passa a ser local de visita esporádica e fugidia em fim de semana. Os dias vão ser repartidos entre a Escola Primária ao fundo da rua e o quarto com papel de parede cada vez menos sem brilho e sem graça.
Poucas posses, dificuldades mais que muitas, saco com o livrito de leitura, lousa
- com os primeiros sarrabiscos, que o dedo molhado na saliva se encarregava de preparar para nova tentativa de escrita - sandálias de plástico no Verão, tamancos de sola de pau no Inverno, roupas frias mas limpas. O regresso a casa onde a Madonna, que eu chamava de Madrinha, me esperava com um invariável tabefe ou descompostura, ou pior ainda, uma daquelas tarefas domésticas que sobram para o filho da ajudante de cozinheira: esfregar o chão com palha d’aço, lavá-lo com água e sabão amarelo e por fim espalhar a cera cor de rosa que deveria, depois de seca, ser bem polida até brilhar.
Mas o que mais custava era o vagaroso arrastar das horas entre as quatro paredes, dois guarda-vestidos, mesa, cama, cómoda, pechiché, um lavatório redondo de esmalte que abrigava por baixo um bidé em suporte de verguinha de ferro e um guarda loiça que guardava as poucas porcelanas até ao dia em que, ao tentar chegar a uma bisnaga de carnaval escondida por castigo, me pendurei e o guarda loiça abriu as portas e deixou sair as porcelanas que se escaqueiraram no chão.
Outras asneiras se seguiram com outras tantas reprimendas. O vício terrível de lamber os lábios
até gretarem de cieiro e ganharem crosta de ferida que estragaram as fotos a preto e branco do dia da Comunhão na Sé Catedral, apesar das camadas de Pomito Lencart
(para alívio) ou das esfregadelas com malaguetas (para castigo).
As primeiras atracções do feminino: a sobrinha da vizinha do rés do chão que me revelou o sexo imberbe com cheiro fresco de sabonete que eu num gesto puramente instintivo - como se estivesse desde sempre escrito no meu código genético - beijei com profunda veneração como um ateu que descobre a sua divindade; as empregadas da escola que eu roçava a intervalos com espreitadelas por baixo das saias quando elas subiam as escadas; a chefe das continuas que ao me ver espreitar de gatas na casa de banho me escancarou a porta e as pernas para, sem pudor, eu puder desfrutar de uma visão que durante noites me tirou o sono; o atelier da vizinha da frente - a D. Emília que tinha um Renault Gordini
sempre com cheiro a novo - cinco ou seis moçoilas que debochavam com a minha inocência e se entretinham a provocar-me com gestos, com roços, com entrelinhas que eu na altura não decifrava, ao mesmo tempo que apalpavam o inchaço que teimosamente - apesar de toda a minha vergonha e timidez - teimava em crescer-me dentro da braguilha. As primeiras masturbações com os olhos postos na figura da Lola

que em tirinhas no Jornal de Notícias aparecia com vestidos colados ao corpo, generosos decotes e em dias de sorte em fato de banho.
Das aulas em si quase nenhumas recordações. Mas não esqueço o abominável sabor do óleo de fígado de bacalhau distribuído com regularidade e fervor salazarista. Afinal de contas tratava-se de preparar mais uma geração para, quem sabe, a Mocidade Portuguesa
e sem dúvida a Guerra Colonial.
São deste tempo as primeiras explorações em círculos concêntricos, com epicentro no 55 da rua do Sol e cada vez mais alargados, para ficar a conhecer: a Batalha com as linhas entrecruzadas dos eléctricos
(a primeira vez que saltei em andamento também me saltou da mão a cesta que levava a marmita do almoço do taxista, amante à data da Madonna, que nesse dia não almoçou); o cheiro a bolachinhas quentes na rua Entreparedes, a antiga Escola Oliveira Martins, as Fontaínhas mesmo ali ao lado, o Douro de tantas caras, as pontes; a Serra do Pilar; os artesãos da prata que nos passeios da minha rua repuxavam trabalhos lindíssimos em salvas e serviços de chá que iriam enriquecer, sem dúvida, o espólio de algumas famílias mais bafejadas pela sorte ou pela cobertura protectora do antigo regime (Oh! Mãe quem é o Salazar ?
– Shiuu! Não se fala do Salazar, podemos ir presos).
Mas já sabia escrever e a mão pôs no papel, em linhas de tinta saída de aparo molhado em tinteiro, as palavras que uma vizinha do segundo andar, mais letrada, ia debitando em ritmo monocórdico :
- Que-ri-do Pai....!!!
Afinal eu não era só filho da ajudante de cozinheira, como tantas vezes defendera na escola perante o riso de escárnio dos outros putos mais reguilas e conhecedores da natureza humana, mas também do Brasileiro que regularmente enviava uma remessa para as ajudas de custo do crescimento do ramo genealógico que ficara para trás deste lado do Atlântico.
O fim da Primária! O sr. Professor, que nos últimos dias de aulas acumulara em alguma dispensa coelhos, chouriços e outras regalias, avisa a ajudante de cozinheira que o filho não tem jeito para os livros e não valeria a pena esbanjar o dinheiro a pagar os exames de admissão à escola preparatória ( via profissional) e muito menos ao liceu.
O futuro imediato passa pela Farmácia Confiança, esquina de Santa Catarina com Escola Normal. Cem escudos de salário mensal que em dia de pagamento era reduzido dos prejuízos entre frascos partidos e outras tropelias. Tive ao menos o privilégio de alargar os meus horizontes; o Marquês, o Bulhão, os Aliados. Conheci também o cheiro do amoníaco (experiência bizarra), ajudei nas análises à urina que revelavam o estado de tantas mulheres ansiosas, vi pela primeira vez o desgosto na face dum homem maduro - o meu patrão que era manquinho- quando a mulher, a Sra doutora, o trocou por outro.
Há também memórias das primeiras noites de Natal. No quarto com papel de parede nunca houve uma árvore do Natal, nem enfeites. Era uma noite como as outras à excepção de um par de meias ou umas cuecas. Lembro-me do primeiro presente que não foram trapos. Acordei de manhã e vi o embrulho. Pelo formato era uma espingarda. Ao desembrulhar descubro dois tacos de plástico, uma bola branca cheia de pequenas mossas e dois ou três artefactos também em plástico com um buraco no meio: era o desiludido proprietário de um kit de mini-golfe.
Quando já andava sozinho na rua ia na manhã de Natal a casa da madrinha onde na véspera o resto da família se reunira e onde os primos tinham já recebido os seus presentes: legos, pistas de comboios, mechannos, pistolas... era um fartote. Para mim estava reservado mais um par de cuecas. Felizmente havia outras coisas boas: as rabanadas, o leite creme, o pudim francês, o cálice de Porto e o assado da tia Teresa.

A Terceira Infância

A Mãe zelosa procura um futuro um pouco melhor para o órfão de afecto de Pai. Na Conga (onde trabalha na altura) as trouxas, os bolinhos de bacalhau, os acepipes confeccionados por mão habilidosa atraem gente de vários quadrantes da vida activa e profissional e proporcionam uma fonte de informações que, com mais favor menos favor, indicam o caminho: o Real Colégio de Nossa Senhora da Graça dos Meninos Órfãos do Porto.


O tamanho impressionou.
Eu, puto gordo e anafado que comia ao pequeno almoço seis pães quatro cantos com manteiga e uma xícara de café - leite nem cheirá-lo, desde que ouvi uma história em que as leiteiras mijavam no leite para encher a vasilha - o que tornava esta a melhor refeição do dia (em comparação com os menus de bofe e baço, bacalhau fino com pele cinzento mole que volta e meia, às escondidas, voava para debaixo dos móveis atraindo uns ratitos até simpáticos mas que deixavam os adultos em alvoroço, rogando pragas e armando umas caixas cor de rosa esquisito, bocado de gordura de toucinho na ponta de um arame com força de mola que deveria apertar o pescoço do guloso que enfiasse o focinho na ratoeira),

levanto o olhar para poder enquadrar na totalidade o meu novo lar. Aspecto austero, laivos de mosteiro ou retiro, mesmo colado ao cemitério, uma profusão de janelas alinhadas em fileiras.
Numa mão uma mala com contrafortes nos cantos, comprada na rua do Cativo, onde bem dobrado se acomoda o parco enxoval, escolhido entre os pregões e os calões da rua Escura, com todas as peças identificadas dum 38 bordado em linha vermelho vivo. Na outra, uma cesta, asa pequena e frágil, ferragem mais tarde reforçada com um aloquete, que serviria para, nas visitas semanais de Segunda-feira, reabastecer de carinho na forma de pacotes de manteiga, chouriços, queijo e com sorte uma barrita de chocolate ou um pacotito de cinco bolachas baunilha que depois de abertas sempre davam dez.
O primeiro ano de adaptação aos dormitórios com camas de ferro dispostas em quatro filas, biombo branco lá ao fundo onde se reserva o supervisor; ao grande refeitório com mesas pesadas, comida saída dos grandes panelões para os pratos de alumínio; aos horários rígidos, às filas, aos silêncios, à missa diária, passa num ápice, no turbilhão de tantos amigos novos, carentes como eu de carinho e conhecimento.
Repetida a quarta classe, os dois exames de admissão ultrapassados com à-vontade contradizem a opinião do professor coleccionador de coelhos. O futuro alarga-se em novos livros, na passagem do dormitório dos pequenos para o dos médios, em novas aventuras e traquinices que por vezes fazem descer em gesto seco e rápido a régua dos cinco olhinhos que o padre Bifes

segura em mão sapuda enquanto a cara vermelha, de raiva ou de prazer, mal segura uns olhos esbugalhados que tentam, em vão, ser mais duros e convincentes que a pancada acabada de cair na minha mão.
Entretanto, levada por uma arteriosclerose, a Madonna foi a enterrar no meio de grande choro e grito. A carpideira mor, pelos estertores e revirar dos olhos, assumiu dias mais tarde o controlo da casa da Madonna e dos tempos que eu passava no quarto com papel de parede, cada vez mais desbotado, em fugazes domingos ou nas férias grandes.
Cedo lhe comecei a chamar Mamã, não por substituir a Mãe que tardava em chegar a casa por culpa do horário das casas de pasto por onde ia passando, mas por ser assim tratada com carinho pelos atletas da Secção de Natação do FCP que, em dia de treino, desciam em grupo a Corticeira, com um lanche à base de quartos de sêmea, para atravessarem o rio para o lado da Praia dos Tesos. Aí, depois de trocarem de roupa em velhas cabanas de madeira, preparavam nas águas do rio, entre duas jangadas unidas por filas de pequenas bóias de cortiça, as próximas provas do calendário. Em tempo de férias eu seguia-os para os treinos e para as provas até eu próprio ter perdido o temor à água e me tornar em atleta do FCP primeiro e do Fluvial depois, sem grandes resultados desportivos devo confessar.
A Mamã - Luisinha de seu nome - trouxe com ela um filho já homem, um segundo marido que por sua vez trazia na sua bagagem uma filha Fernanda - dois, três anos mais velha que eu.
A falta de espaço levou a Fernanda a dormir na minha estreita cama de rede e colchão de folhelho já que a maior parte do tempo eu estava ausente no Colégio. E eu, quando voltava, ia dormir na cama da minha Mãe, no mesmo quarto. Como ela vinha sempre tarde, dava para fazer incursões à outra cama, ou não fosse eu o seu legítimo proprietário, para, em conversas em surdina por baixo dos lençóis, ir entendendo coisas que no Colégio nunca iria aprender e surpreender-me com o primeiro beijo que boca húmida me oferecia e que eu, tão atrapalhado, não soube merecer.

Nesta altura nasce o meu gosto pela desenvoltura em sala de aula, alicerçada em sã competição com o Castro ( hoje professor de Matemática no Secundário) com quem alternava o primeiro lugar no Quadro de Honra. Os primeiros versos em redacção sobre as árvores e o primeiro soneto entregue com mão trémula e envergonhada à recepcionista da Casa de Saúde da Avenida dos Aliados - Céu de seu nome, moça roliça, sorriso manhoso - onde, aos fins de semana, visitava amigo do Colégio a quem serraram cinco centímetros de uma perna para equilibrar o que já faltava na outra por desarranjo no crescimento por causa da poliomielite.
Vêm-me à memória algumas figuras, companheiros de brincadeiras simples como o pião, o espeto, as caçadinhas (que em dias de chuva eram organizadas em corredor muito comprido e estreito para tanta folia), o futebol.
Ah! O futebol!!! Que aos fins de semana se transformava em jogo oficial com equipamento à maneira, cores vivas e alegres que nos despertavam da letargia cinzenta dos dias passados debaixo do controlo organizado de tão complexo formigueiro. Pelo porte alargado era-me concedido o lugar de guarda-redes e o nome de Barrigana, misto de homenagem ao outro que defendera as cores do Porto e á minha barriguita arredondada, já não pelos pequenos almoços, mas por pratadas de massa macarronete com tiras de atum escuro, batatas estufadas com leves resíduos de carne de terceira, que tornavam os dias de arroz branco com um ovo cozido num acontecimento a desejar ver repetido brevemente.
Talvez para distrair o nosso espírito crítico em relação ao que encontrávamos nos pratos de alumínio eram servidas, depois da oração de acção de graças, páginas de cultura avulsa que, do alto de um estrado, alguns alunos, eu incluído, liam em voz alta para submissa plateia.
E, entre duas garfadas, desfilavam as aventuras do Miguel Strogoff, do capitão Nemo, do professor Lidenbrock, do Phileas Fogg e o seu criado Passepartout. Nada melhor que Júlio Verne para libertar, mesmo que por instantes, o espírito daquela rapaziada presa entre muros de saudade e resignação.
E lembro o Albano, o Nelson corcunda, o Azeitonas ( apelido por via de ter repetido o nome de família: João Oliveira de Oliveira), o Ratinho (por dificuldades respiratórias parecia um gato a ronronar), o Serafim, o António Lopes (hoje médico no Hospital de S. João) e o seu irmão Jaime (artista fabuloso que nos trabalhos de desenho e pintura a todos espantava com seu talento e que depois de muitas bofetadas da Vida conseguiu ser professor de EVT em Peniche), o Tacto ( pela insensibilidade com que jogava descalço e pelos bicos que dava nas bolas, contando no seu palmarés vários estouros), o Zézinho e o Moreira - que mais tarde formariam comigo e com o padre Rocha o Ritmo 70 - e tantos outros cujos nomes se esfumaram com o passar dos anos, ou que ainda lembro mas não quero aqui fazer uma lista exaustiva tipo lista telefónica.


Do lado dos educadores, além dos já citados padre Bifes e padre Rocha, uma palavra para recordar o padre Alberto (que mostrou muita coragem ao assumir a sua condição humana e desistir de uma carreira eclesiástica, condenada ao celibato, para constituir família com a mulher que lhe deu pelo menos duas filhas); o Apache, professor de desenho e trabalhos manuais que devia o seu apelido ao cabelo teimosamente espetado para cima, que um dia me ofereceu 6 reguadas, para sobremesa, com a tranca da porta do refeitório (metro e vinte de comprido, cinco ou seis centímetros de grosso) por eu ter invocado o nome de Santo Nome de Deus de Macau e ele ter entendido que eu lhe chamara macaco; o Fininho seminarista, figura esguia que a batina preta tornava ainda mais esguia; o Tolinhas - padre que combatia as dores de cabeça com emplastros de cascas de batata enrolados à altura da testa; o querido padre Maffini, figura de rara delicadeza que todos vimos agonizar no seu leito em vésperas de Extrema Unção, dando a sensação que nunca estaríamos tão perto da Santidade como naquela ocasião, e outros que não conseguiram escapar à traição da memória.

E há outras lembranças soltas, tão insignificantes mas que permanecem.
O bater das palmas para nos acordar às seis e meia da manhã, barulho que o Fininho substituía pelo estalar do cinto dobrado que de repente ele esticava.
Nas manhãs de Domingo ou Feriado o alerta era dado pela banda sonora do Ben-Hur. A parede do corredor que em dias de chuva dava choque e que nós aproveitavá-mos para fazer cadeias humanas até o último tocar nas orelhas dum mais incauto que levava um estremeção; descer os compridos corrimões (desde o segundo andar até cá em baixo) em posição de amazona - sentados de lado - sem cair nas curvas; ensebar as bolas de futebol, para torná-las impermeáveis, junto do sapateiro Vilela; o barbeiro, figura odiosa pelo aspecto - parecia um bajulador nazi - mas também por nos aviar com cortes de cabelo à tigela; o dia da matança do porco em que corríamos atrás do pobre animal minutos antes do golpe fatal.
Houve um ano em que fiquei encarregado da sacristia e teria de tratar dos paramentos e de todos os detalhes inerentes à celebração da Eucaristia. Lugar de responsabilidade, que me dava um certo estatuto entre os petizes, mas que me trazia tarefas adicionais sem nenhuma recompensa. Minto. Tinha a recompensa de poder beber, às escondidas, o vinho da missa, directamente da garrafa ou escorropichando o que sobrava nas galhetas. Quando chegavam hóstias novas era um festim. Estaladiças, com ou sem manteiga surripiada da dispensa, ou então torradas na chama de uma vela. Tinha também o privilégio de contactar com as beatas que enfeitavam a igreja nas datas festivas. A maior parte da vezes era eu que assistia o padre na celebração. Nos primeiros anos que estive no colégio a Missa era rezada em latim. Dizia cheio de fé e convicção aquelas palavras que eu não entendia mas que sabia pronunciar de cor. Mais tarde passou a ser em Português e por vezes havia missa solene cantada dos dias de grandes festas como o aniversário de D. Bosco. Aí a rapaziada esmerava-se e punha toda a força nas gargantas para debitar o Credo e a parte em que cantávamos “Ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras e subiu aos Céus”era o climax.

A Puberdade

As primeiras borbulhas, os primeiros pêlos pubianos, o projecto de barba, acompanham uma crescente vontade de satisfazer os anseios carnais cada vez mais familiares e que quando não satisfeitos se vingam em sonhos húmidos sem controlo e sem licença.
Procuro ajuda nos amigos a braços com problema idêntico, reprimo o desejo em orações, peço perdão pelos pecados, mas o problema está lá e vejo-me a desejar as beatas que enfeitam a capela, as empregadas da copa e tenho pensamentos eróticos com a Bicos - chefe do pessoal feminino, célebre entre os alunos mais espigadotes pelo formato que o seio farto adquire por força de soutien bicudo e que desperta as mais incríveis fantasias contadas em surdina entre vizinhos de camarata.
Tudo isto afogado, literalmente, nas masturbações no banho semanal, onde por vezes conseguíamos introduzir banda desenhada, como a da Lola ou melhor ainda uma literatura de cordel com as aventuras do Pedrinho, um adolescente bem abonado que fazia as delícias de mulheres quarentonas. E eu imaginava-me na pele deste herói e ia desgastando a vareta, ia dando fio à estrela, ia esganando o passarinho, tocando uma pívea, fazendo uma segóvia, tudo calões para indicar a mesma coisa: tocar ao bicho!
Recordo que num retiro espiritual em Cortegaça onde passamos uns dias em recolhimento e oração, havia uma leitura durante as refeições que era passada em Segóvia, uma terra presumo que espanhola. O que se tornava um constrangimento cada vez que aquele nome era pronunciado sendo difícil disfarçar o sorriso e troca de olhares cúmplices entre os miúdos para algum desespero do padre que assistia às refeições. O despertar dos sentidos sem ter uma explicação, sem uma palavra que tire o peso de tantas dúvidas.

E vejo-me a trocar sorrisos nas pistas de carrinhos de choque, ou junto das jukeboxs das barracas de matraquilhos, nas Fontaínhas, em rápidos fins de semana, ou nos bailaricos de S. João onde comecei a dar os primeiros passos de dança: o twist, o shake abanavam o meu corpo em ondas de liberdade e volúpia.
A primeira visita ao mundo bafiento, descolorido e decadente das putas, das putas tristes do Gabriel Garcia Marques, no meio de um punhado de marinheiros americanos que na rua Escura procuram um prazer que não existe, pois não imagino prazer no meio daquelas putas fora de prazo, espalhadas por bares avermelhados com uma banda sonora assinada pelo Nelson Ned, escarrapachadas em mesas sujas em posições que revelam a pobreza do corpo e a miséria da alma.
A segunda visita guiada por um colega do colégio em noite perto das férias do Natal. Fuga pelo largo portão ao fim da tarde com o destino planeado e marcado por ele, o Quim Valpedre. Joaquim de nome próprio, Valpedre por apelido já que vinha dessa terra perto de Penafiel onde o avô era proprietário de uma fábrica de queijos que ainda hoje existe. Relembro esta estória sempre que no supermercado procuro o meu queijo de bola e dou de caras com os queijos do avô do Quim. Mais velho e espigadote o Quim seguia o rasto duma aventura de outro amigo da terra dele o que nos levou para uma travessa da rua de Trás, ao lado dos Caldeireiros, outra zona de bas fond muito conhecida naquela época e que rivalizava com a rua Escura e a rua dos Pelames. Umas cervejitas para aquecer e porque a sabedoria de meia tigela dizia, na altura, que com umas cervejas no bucho um homem é capaz de se aguentar mais um bocado e fazer atrasar aquilo que as putas querem que aconteça o mais rápido possível.
Primeiro desaparece ele no meio da fumarada dos cigarros queimados em gestos nervosos de quem espera a sua vez. Pouco depois sou eu que subo as escadas poeirentas, atrás da mesma loira trintona que acabou de o aviar, com medo de me
encostar às paredes, não vá cair o resto do estuque esburacado.
O mesmo quarto, a mesma cama ainda quente, o mesmo corpo ainda suado, o mesmo enjoo, o mesmo bidé onde, com gestos mecanizados, ela me lava, assim eu pudesse lavar-me por dentro e tirar de mim a pergunta:
- O que estou aqui a fazer?
Os meus gestos desajeitados revelam que é a minha primeira vez com uma mulher o que faz com que ela mude para uma atitude mais didáctica, mais encorajadora e, honra lhe seja feita, menos profissional.
- Relaxa, - diz com voz que chega a ser doce - eu ajudo-te. Risonha, talvez até contente e orgulhosa por ir tirar os três a um mancebo quase imberbe, revela que para mim se põe toda nua sem eu ter de pagar os vinte escudos que normalmente leva por este extra.
Eu já deitado, curioso, vejo os gestos leves com que se despe e revela para mim um corpo moreno, que desmente a cor oxigenada do cabelo, maduro, cheio sem ser gordo, as mamas grandes mas ainda firmes, o sexo bem camuflado atrás de um púbis escuro e farfalhudo para onde ela leva a minha mão para eu tocar, descobrir, aprender, como se faz a um cego quando lhe apresentamos um novo objecto, uma nova textura. Experiente, ela guia-me, indica-me o caminho, atrasa-me, muda de posição, atrasa-me outra e outra vez porque afinal as cervejas não estavam a surtir efeito.
Fecho os olhos e deixo-me levar por esta ternura que eu julgara impossível existir neste submundo e vou relaxando e abrindo os sentidos às novas sensações que me invadem em catadupa, em ondas de um prazer muito mais rico, mais forte do que aquele a que estava habituado a desfrutar na solidão da masturbação.
Foi a minha primeira e última experiência como cliente de cama tarifada de um bordel.

Interfácio I

Quando me propus escrever algumas linhas que servissem de testemunho a um espaço de tempo que se estendeu por meio século não fazia ideia que a tarefa seria tão exigente, não só pelo esforço da memória, mas também pelo desgaste que certas lembranças causam e pela responsabilidade de não frustar os leitores e levá-los a ler, com um sorriso no coração, até ao último ponto final.
Nesta altura da narrativa vai-se tornando cada vez mais difícil ordenar cronologicamente os acontecimentos. Vou por isso apresentar os factos ou os temas em bloco, sendo assim mais fácil apreciá-los no seu todo ao mesmo tempo que para mim é menos complexo encadear o raciocínio.

A Música

No quarto com papel de parede havia um rádio antigo de válvulas, peça muito bonita, caixa de madeira escura com os seu botões e teclas cor de marfim que debitava, por vezes com a ajuda indispensável de uma faca que lhe aumentava a captação do sinal, algumas melodias da época a que eu não dava grande importância. Lembro-me apenas de alguns nomes como Dalida, Rita Pavone, Gianni Morandi.
As jukeboxes das Fontaínhas trouxeram aos meus ouvidos sonoridades bem diferentes: Black is black (I want my baby back), Delilah (Tom Jones), muito Roberto Carlos, Bee Gees. As primeiras notas dos Beatles com Obladi Oblada e Hey Jude e com a sensação que algo estava a mudar, mesmo entre as paredes austeras do Colégio. E a coisa foi ficando mais pesada com Led Zepling, Black Sabath, Huraiah Heep, Deep Purple ou mais sofisticada com Pink Floyd, Yes, Tangerine Dream and so on, and so on.

Mas o que mais mexe comigo, ainda hoje, é sem dúvida Pink Floyd. A sonoridade enche-me a “alma”, os solos de guitarra arrepiam-me o ser. E se fecho os olhos vejo passar diante de mim tantos bons momentos da minha juventude. Juventude que eu tento defender com unhas e dentes, pelo menos no espírito, porque o corpo já conheceu outras horas de glória e vai seguindo inexoravelmente o seu destino.
Mas também conheci a música do outro lado. Sim. Do lado do artista! Sem glória nem sucesso mas com o mesmo formigueiro, a mesma dor de barriga que a todos atormenta na hora de subir ao palco.
Aprendi a dedilhar as cordas da viola com o padre Rocha. Os dedos sangravam entre os Mi Maior e os Lá Menor, mas com perseverança lá fui arrancando uns acordes da Avé Maria de Shubert.
Os tempos eram de mudança e enquanto o Diabo esfrega um olho, os padres viram entrar pela porta dentro uma aparelhagem completa que faria corar de inveja algumas das bandas mais populares da época: órgão Hammond, guitarra Fender Stratocaster, bateria Premier. Um luxo! Estava criado o Ritmo 70! Eu e o Artur na guitarra, o Moreira na bateria, o Costa no baixo e o padre Rocha no órgão. Sim, meus amigos, estávamos em 1970 e este artista encantava plateias (não muito exigentes é certo) por vários pontos do país.

Lembro-me de um espectáculo em Melres, Gondomar, onde aconteceu uma cena divertida: para amaciar a garganta o meu amigo Artur, na altura dono da guitarra solo e hoje pintor e caricaturista de talento, foi chupando, uns atrás dos outros, rebuçados da tosse. Na hora de cantar era tanto o açúcar a colar-lhe as cordas vocais que foi uma aflição para levar até ao fim “ la cucaracha”. Outro no Colégio da Bonança (Gaia) perante uma audiência feminina histérica, outro numa festa de finalistas dum colégio de St. Tirso, outro ainda em Vilarandelo, Chaves, organizado por um colégio de freiras.
Mas o ponto alto foi o programa Canal 13 na RTP. O ponto alta em adrenalina (a nossa actuação foi riscada do alinhamento final e nunca foi vista por ninguém) pois para jovens dum colégio de padres estar nos bastidores de um programa de
tal grandeza a nível nacional era qualquer coisa de fantástico.
Os outros convidados estavam como nós atrás da cortina e “convivemos” com a Miss Portugal da altura, Maria João Lucas, e vimos passar ao alcance dos olhos (e das mãos) um corrupio de bailarinas com fatos de banho cetim brilhante e meias de rede na qual gostaríamos de ser pescados e arrastados para um delírio qualquer.
Antes da música já outra Arte me levara ao vaidoso prazer de recolher os aplausos de plateias que se acotovelavam para ver os artistas preferidos do colégio em dramas, em comédias, em operetas. A meu lado contracenava (e levava metade dos aplausos) o meu querido amigo António Capelo (sim! esse das novelas e dos filmes) o que me leva a pensar que o meu percurso pela vida poderia ter sido outro. Mas eu estou muito contente com este.
Até ao dia, em que numa peça dramática em três actos, eu fiz o impensável. Para meu azar eu recebia a meio do segundo acto uma deixa exactamente igual a outra que só aparecia quase no final da trama.
A minha resposta é que era diferente. Agora imaginem eu responder a meio do segundo acto a frase do final.
Resultado: metade da peça desapareceu, ninguém percebeu patavina da história e o padre director foi pessoalmente aos bastidores para me esticar as orelhas como se quisesse que elas tomassem a forma das orelhas do animal que a sua boca repetia sem cessar: - Burro, Burro, Burro!
Foi o ponto final duma carreira de sucesso.

O Desporto

Como todo o aluno Salesiano, além da formação académica e religiosa foi-me dado também o provérbio ”Alma sã em Corpo são”. Do futebol já vos dei conta mas não resisto a contar um episódio que demonstra bem a fragilidade de miúdo tão carente, na data dos factos deveria ter 11, 12 anos.
Um aluno mais velho - que me perdoe mas não lhe recordo o nome, só a figura - tinha umas chuteiras mais que velhas (vendo bem era só a do pé esquerdo porque a do direito estava pronta a ir para o lixo) não com pitões como as de agora mas com travessas de sola e eu como era canhoto a jogar à bola fui o herdeiro daquela chuteira toda rota mas que calçada no meu pé me fazia acreditar que até tinha jeito para dar uns chutos. E era ver-me correr atrás da bola meio a mancar porque o outro pé ou ia descalço ou com uma sapatilha barata e porque a chuteira era dois ou três números acima do necessário.
Os primeiros contactos com o basket - jogo muito querido de toda a Família Salesiana - que numa fase posterior me levou vestir o equipamento dos juvenis do BPM e uns anos depois me levou à glória numa final interturmas do Liceu de Gaia (ver outras estórias do liceu alguns capítulos à frente) com o resultado final de 99-86 tendo eu apontado cerca de 40 pontos para a minha equipe, o lendário F7F.
Nunca fui um atleta de eleição, mas cultivei toda a vida - pelo menos até aos quarenta e tal - o gosto pela actividade física e fui praticando os mais diversos desportos, não pela corrida às medalhas mas pelo puro prazer de competição, da camaradagem, do esforço físico e também, por que não dizê-lo pelo prazer do duche reconfortante depois do suor.
Umas linhas atrás falei-vos da natação, do futebol, do basket, mas também fui experimentando o ténis, o badmington, a bicicleta, o futsal.
A última “ modalidade” foi o bodybord, vício apanhado na minha primeira viagem ao Brasil, onde comprei a minha primeira e única prancha (uma Speedo) que guardo ainda hoje com a promessa, sempre adiada, de metê-la brevemente no mar. E era ver-me, fato de borracha, prancha amarela debaixo do braço, barbatanas na mão, a olhar o mar à procura do melhor sítio para entrar, com chuva, frio, vento, sol, não interessava.
E eram uma, duas, três horas dentro de água sempre à espera da melhor onda, a cabeça toda concentrada ali, bloqueando todos os problemas, todas as chatices. E depois era ver a onda crescer à minha frente, por vezes medonha, pesada, e virar-lhe as costas, pôr a prancha de feição e sentir a força que me empurra, me arrasta, primeiro numa crista que me eleva, depois uma rampa que se inquilina para acabar num turbilhão de espuma. E grito de alegria, de satisfação, por ter enfrentado uma força tamanha e ter “sobrevivido”.

Fora do Colégio

Acabado o quinto ano antigo, e como não havia no colégio o sexto ano, fui inscrito no Liceu Alexandre Herculano. Era perto, bastava atravessar o cemitério, subir António Aroso e estava lá. Dezassete anos de corpo, mente muito nublada por seis anos de internato em ambiente austero, foi um choque.
A irreverência juvenil dos meus novos colegas, que já tinham vivido o Maio de 68, foi contagiante e desinibidora. Outros horizontes se abriram, assim como as portas do Café Nova Sintra, onde o cafézinho da manhã era servido na companhia de sorrisos femininos, que me tinham sido negados durante tanto tempo, e que agora me faziam esquecer a hora de entrada nas aulas levando os padres do colégio, depois de receberem o boletim mensal de faltas, a mostrar-me a porta da rua. Que eu atravessei, dando um desgosto tremendo à minha querida Mãe, meio anestesiado por um mundo novo que se entranhava nas veias com toda a oferta de uma nova vida até aí por mim desconhecida.
O aluno brilhante e prometedor de anos anteriores esfumou-se no meio do fumo dos cafés, das tertúlias, das festas à média luz, dos namoricos. Numa época da vida em que todos os perigos espreitam, em que o nosso caminho pode seguir rumos transviados, tive o privilégio de ter sempre sorte na escolha dos amigos, melhor dizendo, a sorte deles me terem aceitado como amigo, não dando qualquer valor às minhas raízes humildes, antes apreciando o meu sentido de humor e a minha alegria incontida de adolescente que se sente liberto de tantas amarras.
Desses tempos lembro o amigo Luís, (loiro, olhos azuis, o que tornava o parceiro ideal para um moreno, cabelo preto) com quem vivi páginas de aventuras gloriosas. O mais velho de três irmãos, que viviam com a mãe viúva num dos lugares mais fascinantes que eu conhecia aquela data: nas traseiras da Igreja de Santa Clara, onde hoje se alargou o Instituto Ricardo Jorge.
Naquela altura os pré fabricados não estavam lá e a casa abria-se para um enorme terraço que ia descendo pela encosta, em direcção ao rio, em socalcos cobertos de árvores de fruto e pequenas hortas. Tudo isto emoldurado pela muralha Fernandina, onde quando éramos mais pequenos reinventávamos as conquistas dos cavaleiros dos primórdios da nacionalidade. O irmão mais novo, o Zé, em pequeno adormecia sempre balançando a almofada ao mesmo tempo que cantava músicas dos Beatles num inglês algarviado.
Lembro-me dos tempos em que ele namorava a Regina, uma de três irmãs de Mondim de Basto a quem o pai tinha alugado uma casa em Coelho Neto, e das festas em sua casa. Namoriscava eu, por aqueles dias, a Olívia, ao som de “Peter Frampton comes alive”.
Devo dizer-vos que as festinhas eram muito frequentes e a qualquer hora. Uma vez, numa rua em frente ao Liceu de Gaia, estávamos às nove e meia da manhã numa festa às escuras quando entra o dono da casa, alertado por uma vizinha madrugadora, tropeça nos dois ou três primeiros corpos que já se estendiam no hall de entrada, acende a luz e com uma fleuma mais que britânica diz:
- Meu filho! Diz, por favor aos teus amigos que agradeces a sua visita mas já são horas de irem embora!
Noutra ocasião, a meio da tarde, na casa do Becas na Constituição, fomos surpreendidos pela mãe deste que regressara mais cedo do trabalho. Ele, que estava no quarto com a futura mulher, foi logo apanhado. Eu e a Margarida, que estávamos na sala, conseguimos sorrateiramente escapulir pela porta para as escadas sem a mãe dele, que se desdobrava em impropérios e lições de moral, nos ter visto. Um susto!
O Luís casou com a Rosa Margarida, amiga que eu trouxe do Liceu de Gaia para uma das festas memoráveis que se faziam em sua casa, tudo às escuras, daquelas músicas que nunca mais acabavam.
Mas a nossa maior aventura foi ir a Lisboa assistir a uma corrida de Fórmula 2 no autódromo. Um Sábado de manhã esticamos o dedo e apanhamos uma boleia em Santo Ovídio que nos deixou às portas de Lisboa. Sorte pelo pouco tempo de espera, nem tanto pelo condutor, um médico de meia idade, que passou a viagem a falar de política, assunto que anos antes do 25 de Abril nos deixava sempre desconfiados não fosse o interlocutor ser um agente da Pide disfarçado a tentar tirar nabos do púcaro para depois nos enfiar nos calabouços da sede ao lado do cemitério. Falava-se na altura que esta proximidade não era inocente nem coincidência e que seria estratégia para fazer desaparecer muitos dos presos.
Mas lá chegámos, mochila às costas com uma muda de roupa, algumas sandes e no meu caso uns parcos 100 escudos no bolso. Pequeno passeio pela Avenida da Liberdade, procurar e encontrar uma pensão manhosa num beco estreito perto do Rossio.
Domingo de manhã acordar cedo para nos fazermos ao caminho que naquela altura não havia A5 e o Grande Prémio esperava por nós ao princípio da tarde. Movimento intenso rodeava o Autódromo levando-nos a sair da camioneta muito longe da bilheteira. Uns Troféus para aquecer e depois a corrida principal. Não sei quem ganhou, mas lembro-me que estava lá o Fitipaldi e recordo sobretudo o cheiro a gasolina especial que teimava a colar-se às narinas e a entranhar-se na roupa.
Fim da corrida, o debandar para Lisboa e no fim daquela tarde de Verão esticar de novo o dedo indicando o Norte. O desalinho das roupas, o cabelo comprido não ajudaram que a coisa se resolvesse tão facilmente. Rotunda do Relógio, meia noite e a mão, já cansada de tanto esticar, recolheu dentro da mochila para procurar o que restava de um pão amassado que dividimos irmamente e depois se afundou nos bolsos onde a custo angariou entre moedas soltas uns pobres 10 escudos.
Por sorte a noite estava linda, temperatura amena e por fim, não resistindo ao cansaço, os corpos esticaram-se na relva, mochilas debaixo da cabeça, olhos fitando um céu salpicado de estrelas, últimas palavras a combinar o destino a dar aqueles 10 escudos na manhã seguinte. Seriam concerteza para um pequeno almoço à base de pão, um copo de leite para ele, um café para mim.
Assim foi e o dedo esticado de novo. Uma boleia que depois de muitas saídas do itinerário principal (o homem era vendedor) nos deixou às portas de Leiria, ainda a duzentos quilómetros de casa.
Encostados nas grades da ponte sobre o rio Liz, bem no meio da cidade, começávamos a duvidar da nossa sorte, quando um carro pára e nos franqueia as
portas para afundarmos os ossos doridos no conforto dos assentos.
Era do Porto e o filho também tinha usado o cabelo comprido até à semana anterior, agora já não porque tinha vindo trazê-lo ao quartel para aí começar a recruta. Palavra puxa palavra e descobrimos que era o pai de um nosso amigo, o Zé do Real, assim chamado por o pai ser dono do Café Real, local de prostituição instituído na rua do Cativo, muito conhecido do maralhal que por vezes, em noites de ócio, se entretinha, à sua porta, a cronometrar o tempo que demoravam as prostitutas a aviar os clientes nas pensões mesmo ali ao lado. O homem ficou contente com a coincidência e por alturas de Grijó levou-nos a jantar um belo bife que era a única comida quente que o nosso estômago via em três dias.
Outra aventura com o Luís foi um fim de semana para ver as corridas em Vila Real, viagem pelo Marão, acampamento na curva da Timpeira perto do rio, o convívio com tanta gente que aí acorria para desfrutar de um desporto que tinha muitos adeptos e que aqui no Norte tinha em Vila Real e em Vila do Conde os seus santuários.
Por falar em Vila Real lembro-me de outra aventura passada com um amigo que já saltou fora desta vida, tendo atravessado o abismo empurrado pela ponta bicuda de uma seringa.
O amigo era o Joca, nome de guerra dos tempos de juventude, que morava na rua das Fontaínhas e que, como eu, frequentava a zona da Batalha e o Salão Vasco da Gama. Creio não estar enganado ao dizer que foi um jogador de basket de eleição do Clube Vasco da Gama que tinha um pequeno pavilhão ali no Jardim das Camélias.
Rapaz vivido, vivaço, que chegou a ser amante ou proxeneta da dona de um bar que lhe dava tudo: carro, mota, roupas, dinheiro, despertando muita inveja nos amigos que além de todas estas benesses lhe invejavam o facto de poder foder, foder, foder.
Um dia o meu amigo Joca fez-me um convite diabólico: ir de mota até Vila Real para ver as corridas. Ele arranjou a mota, o capacete e o dinheiro para as despesas, pois eu era um teso, sem um tostão. Mas ele fazia questão de me levar e eu lá fui. Melhor, fomos seis ou sete cada qual na sua motoreta. Ele levou uma Sachs V5 e eu fui montado numa pequena Puch de dar gás. Nunca tinha andado de mota e fazer uma viagem daquelas, tantos quilómetros, atravessar o Marão, foi de facto uma grandiosa aventura no exacto sentido do termo. Tão grandiosa que me sentia como os cavaleiros do asfalto do filme Easy Rider.
Vi por duas ou três vezes a morte à minha frente. Uma vez ao ultrapassar uma camioneta que era mais comprida do que eu pensava ou a mota andava mais devagar. Outra vez foi em pleno Marão, já de noite, em que fiz mal uma curva e por pouco não caí por uma ribanceira abaixo. Conseguimos lá chegar já no outro dia, depois de umas horas de descanso no meio da serra, com o corpo todo dorido e a minha mota já no limiar da resistência forçando- nos a despachá-la de camioneta para o Porto.
Depois das corridas do primeiro dia montamos as tendas perto do rio no meio de uma amálgama de gentes, uma espécie de hippies maltrapilhos que estavam ali mais para curtir o ambiente do que para ver as corridas propriamente ditas.
O Joca não teve a mesma sorte que eu na escolha dos amigos e foi arrastado para o dark side, bem fundo onde foi traído por uma overdose. Cruzei-me com ele uma ou duas vezes já perto do fim, falámos e ele nunca me pediu um tostão para
o vício como normalmente fazem os viciados.
Que esteja em Paz!
As ideias vão chegando aos repelões, umas claras, outras já difusas pelo tempo passado. Sem dúvida que entre os 18 e os 21 anos (idade com que fui para a tropa) as coisas e os factos sucediam-se a uma velocidade vertiginosa. Hoje recordo e vou relatá-los como folhas soltas de um diário que nunca escrevi mas que guardo com mais ou menos rigor na minha memória. Para classificá-los cronologicamente, nem com a ajuda do Carbono 14 lá ia, por isso vão para estas folhas na ordem que forem aparecendo.
Lembro de uma moça linda que trabalhava no Emílio de Azevedo Campos, rua 31 de Janeiro. Tão linda que me dava à canseira de ir vê-la passar, quando saía para almoçar, na esquina de Santa Catarina. Depois ela metia por Santo Ildefonso e este vosso amigo, desde sempre amante da beleza feminina, corria por Santa Catarina, Passos Manuel, Praça dos Poveiros, para poder vê-la passar de novo perto do Jardim de S. Lázaro.
Lembro dos Porfírios, casa de referência para a juventude da época, por ser a loja mais updated em termos de Moda e acessórios.
Tinha no seu interior underground o último grito da moda londrina ditada pelos grupos rock da altura: Beatles, Rolling Stones, Led Zepplin. Tinha um espaço onde se podia desenhar ou pintar quadros que depois eram expostos e postos a concurso.
Sempre cheio era um corrupio de mini-saias, gangas, casacos compridos orlados de pêlo tipo carpélio, cabeludos, fumadores discretos de erva. A música era espectacular e as empregadas eram todas giras e boas. Desses tempos, além das saudades, guardo a amizade dos irmãos Porfírio José e Porfírio Júnior, grandes contadores de anedotas, com pinta e com um sentido de humor que marcou uma época e uma geração e da sua irmã Luísa.
Lembro do Arturinho dos Tiques, figura conhecida pelos ataques e gritos que dava em plena caminhada pela Baixa. O mais giro é que ele era jogador de basket e na hora de lançar a bola para o cesto fazia sempre um tique e um Huuuu!!! ou um assobio.
Lembro do Armando Palhaço, verdadeiro cavaleiro do asfalto, o motard mais conhecido da cidade não só pelas motas potentes para a época (500 cm3) que conduzia, mas pelas acrobacias malucas que fazia a toda a hora e em todo o lugar e sobretudo pelos “malhos “ que o conduziram várias vezes ao hospital onde, em sucessivas operações, ia acumulando próteses que lhe mudaram o nome para Armando Platina.
Lembro outro amigo das motas, que hoje faz o favor de ser meu amigo também, que não teve tanta sorte e num único acidente comprometeu o uso do seu braço esquerdo que paralisou, atrofiou, e que após muitas sessões de fisioterapia recuperou o suficiente para pegar na sua máquina fotográfica e produzir as melhores fotos de Moda que encheram durante anos as melhores revistas da especialidade. Estou a falar do meu querido amigo José Luís Dias.
Lembro das casas de discos dessa altura, as discotecas no verdadeiro sentido da palavra, onde ouvíamos os últimos lançamentos do vinil em LP ou Single nas suas cabinas insonorizadas. Houve um LP dos New Trolls que fui ouvir dezenas de vezes antes de o poder comprar. Ainda tenho esse disco mas está muito arranhadinho porque antigamente não se tinha acesso directo às faixas pretendidas como acontece com os CD. Tentávamos acertar a ponta da agulha no sítio certo mas a maior parte das vezes era impossível evitar aquele ruído estridente que até arrepiava os pêlos e os cabelos, sinal de que havia mais um arranhão na superfície do vinil.
Não posso deixar de fazer aqui referência ao meu hobbie preferido dos fins de semana: os Bailes! Comecei por volta dos quinze, dezasseis anos o meu périplo pelas salas de baile da cidade e arredores, antros de roço e lascívia, onde alguma juventude da época, eu incluído, tinha a sua primeira proximidade com o sexo oposto. E foi aí que tive as primeiras aulas da “Arte do Bem Saber Apalpar Sem Ninguém Ver “, apesar dos avisos de alguns Marcadores de Sala - os supervisores de cada sala de baile, defensores dos bons comportamentos, bons costumes - que diziam ao altifalante:
- É proibido aos cavalheiros colocar as duas mãos nas costas da dama! Mesmo naqueles tempos as coisas evoluíam e fui passando por vários graus de aprendizagem, primeiro numa salita nas Escadas dos Guindais, tudo às claras, onde dei efectivamente o primeiro abraço a uma moçoila e aprendi a dançar o slow, passando pelos bailes de S. João nos blocos da rua Duque de Saldanha ou na Praça de Alegria, mesmo ao lado do colégio, passando pelas Associações Culturais e Recreativas de vários corpos de bombeiros como os de Coimbrões ou S. Mamede, pelo Bemfazer da Triana, na Areosa, pela Tuna de Santa Marinha perto do cais de Gaia, e por aí fora até chegar ao Salão Vasco da Gama, rua Alexandre Herculano, onde, já quase às escuras e com alguma habilidade, se podia conseguir desapertar um soutien, dar beijos na boca e até, com a ajuda e protecção dos casacos maxi, chegar com os dedos às partes mais íntimas da parceira, aprendendo aí mais umas lições sobre o famoso ponto G.
Lembro das partidas de bilhar no Café Sagres, onde se passavam tardes e noites enfumaçadas para concluir uma partida de “Matos “ no snooker ou então um jogo às Três Tabelas no bilhar livre. Haviam nesse tempo alguns salões de bilhar que eram considerados verdadeiras catedrais: o Café Palladium, onde está agora o C&A em Santa Catarina, o Café Embaixador em Sampaio Bruno, o Café Imperial na Avenida dos Aliados, onde está hoje o McDonnalds, o Café Ceuta na rua com o mesmo nome.
Nunca fui um jogador exímio mas gostava de tentar as minhas carambolas, nunca jogando a grandes apostas em dinheiro porque haviam sempre os mafiosos que nas primeiras tacadas pareciam acabados de descer, na estação de S. Bento, dum comboio vindo da trabinca, para depois de perderem a primeira partida se transformarem em campeões e levarem os poucos tostões - que a minha mãe me tinha dado para o almoço na escola e que eu tinha substituído por uma bola de berlim e um café ou por um quarto se sêmea e uma gasosa (assim o estômago ficava empanturrado por gases e miolo e não se queixava ) - deixando-me com cara de urso ou pascácio.
Das aulas no liceu Alexandre Herculano não tenho muitas saudades. Eu, que era um aluno de francos recursos no colégio, tive que enfrentar uma mudança radical no método de ensino e ao mesmo tempo uma mudança curricular nas matérias o que me fez perder o fio a meada e me desmotivou. Lembro sim dum professor de geografia, o professor Francisco Eleutério Pardal, que tinha a particularidade de não conseguir pronunciar os “zês “ , substituindo-os por “esses“, o que levava os alunos, com frequência, a pedirem explicações sobre a Torre de Pizza. Era uma gargalhada em surdina, não queríamos perder tamanha ocasião de o provocar. Lembro que, como não era permitido fumar em todo o liceu, os fumadores se juntavam ao fundo do pátio, numa formação tartaruga que faria corar de inveja as legiões romanas, para se furtarem à identificação por parte dos contínuos e escaparem às sanções disciplinares.
Mas nada comparado com as memórias do Liceu de Gaia.

O Liceu de Gaia


Levado pela mão duma amiga que conheci na praia das Pedras Amarelas cheguei ao Liceu de Gaia, estabelecimento de ensino com turmas mistas, fugido do Alexandre Herculano, liceu só para rapazes o que nos obrigava a enfrentar as ordens de: - Circular, circular! - que nos eram atiradas pela bófia na hora da saída em frente aos portões do Rainha Santa Isabel, o liceu feminino ali ao lado.
Construção moderna, em contraste com o já referido Alexandre e muito mais com o Colégio, bastante acolhedor e com uma sala polivalente, um conceito inovador na altura em que se faziam todos os entraves para as pessoas não conviverem nem trocarem ideias, promete ser o palco de dias bem passados e sã camaradagem.
Puro engano, pois logo no dia de percorrer os olhos pelas pautas para saber que ficara colocado na Turma F com o número 42, ouço a voz de escárnio de um crioulo com riso miudinho que me atirava em jeito de desafio:
- Que fazes aqui ó moço? Vai-te embora caralho!
Eu, enfiado no meu blusão cor de laranja, comprado nos Porfírios, com um bolso grande à frente, o que me tornava a coisa mais parecida com um canguru ou com um marco do correio e que nunca larguei durante todo o ano lectivo, estranhei mas soube mais tarde que era uma maneira peculiar do Adérito me dar as boas vindas apesar de uma certa desconfiança.
Primeiro dia de aulas e eu lá me apresento, meio envergonhado mas feliz por estar ali e a pensar o que poderia fazer para me infiltrar mais depressa numa turma que já vinha unida de anos anteriores.
A ocasião proporcionou-se quando o professor de História falou nos deveres que eram devidos pelos alunos tendo eu, no meio de uma turma que não me conhecia, ripostado que havia também deveres dos professores para com os alunos. Com a turma toda em suspenso fui instigado por ele a dar um exemplo. Atirei-lhe com a teoria que os professores não deveriam chumbar os alunos porque estavam a praticar uma fraude. Perante a sua perplexidade expliquei que ao fazê-lo estavam a aproveitar-se da ignorância dos alunos para os prejudicarem. O professor nunca mais me pôde ver mas ganhei instantaneamente a admiração e a confiança dos meus colegas de sala de aula, ultrapassando assim um problema que à partida me parecia duro de roer.
A admiração atingiria o auge pouco tempo depois quando, em pleno polivalente, estávamos quatro ou cinco (o Adérito, o Guerra, o Rui Guimarães estavam de certeza) em amena cavaqueira e passou um cavalheiro por nós, deu mais meia dúzia de passos e voltou para trás interpelando o Adérito:
- O senhor não me cumprimenta?
Meio atrapalhado o Adérito titubeou mas não respondeu o que fez o que o cavalheiro me interpelasse a mim:
- O senhor não acha que o seu amigo me devia cumprimentar?
A resposta saiu rápida e certeira :
- Acho que não! Nós já cá estávamos, o senhor é que chegou.
Ruborizado e surpreendido o fulano perguntou se eu sabia quem ele era ao que lhe foi respondido que não, pois só estava à poucos dias naquela escola. Gesticulando esbaforido atira:
- Eu, José Vitorino da Rocha, sou o Reitor deste liceu.
Mal ele tinha pronunciado o nome já a minha mão tinha agarrado a sua, à laia de cumprimento, ao mesmo tempo que respondia:
- Silvério Calçada, muito prazer!
Vociferando qualquer coisa entre os dentes rodou sobre os calcanhares e desapareceu rumo à secretaria.
Foi o golpe definitivo na quebra do gelo, se porventura ele ainda existia, no relacionamento com os meus companheiros.
O meu colega de carteira na maior parte das disciplinas era o Guerra, que não ficava a dever nada, em maluquice, em atrevimento, a este vosso amigo.
Juntos éramos o diabo à solta, que o diga a nossa mui querida professora de Filosofia, Filomena Tacha, que desesperava com as tropelias destes dois alunos sentados logo na carteira central da primeira fila.
Todas as aulas inventávamos qualquer coisa que a punha doida de riso ou de raiva. E quando uma vez se virou para mim e disse que já não sabia o que me havia de fazer, eu pedi-lhe que me fizesse um casaquinho de lã pois estava muito frio. Mas a cena mais engraçada foi quando ela nos explicava os teste de Pavlov e eu e o Guerra dissemos que conhecíamos um teste de equilíbrio. Surpresa, perguntou como era, ao que nós respondemos que teríamos todo o gosto em aplicar-lhe o referido teste, ao que ela anuiu.
-- – A Setora fica em pé com os pés bem juntinhos e vai passar, com os olhos abertos, a sua mão esticada entre as minhas, que estão separadas por uns quinze centímetros, dez vezes. Depois fecha os olhos e continua a tentar passar a mão o maior número de vezes com os olhos fechados. Uma boa pontuação será qualquer coisa acima das cinquenta vezes.
Colocada em posição, iniciada a contagem e fechados os olhos aos dez, começam a sair pela porta fora os mais avisados e mais atrevidos ficando no lugar os mais temerosos ou as alunas de vinte como a Andrelina.
Ela ia perguntando se ia bem ao que nós respondíamos da porta:
- Excelente, excelente!
Mas o burburinho já era tal que ela desconfiou e abriu os olhos. Já ia nos trinta e muitos.
Recordo as aulas de Geografia, que eram dadas noutra sala, sempre que ouço o Rui Veloso cantar: - Sei de cor o teu cabelo, sei o champô a que cheira... Aí eu tinha o privilégio de ficar logo atrás da Bichete, talvez a mais bonita da nossa turma, olhos azuis, cabelo louro que eu ia enrolando com um dedo atrevido, o que a levava a voltar-se para trás com um sorriso branquinho e com aqueles olhos grandes e brilhantes, e dizer desconcertada: - Oh! Silvério!
Havia outra colega que quando eu me voltava para trás e a um sinal meu levantava mais um pouco a saia, já curta, da sua companheira do lado fazendo-a resmungar um Ah! de surpresa disfarçada.
Uma referência ao nosso colega Macedo que chegou à turma por altura da Páscoa, vindo de outro liceu de uma zona do interior ou litoral afastado.
Daqueles rapazes (sim, éramos todos rapazes ainda) que passavam despercebidos, apesar do borbulhame de uma puberdade ainda em efervescência, não fosse a sua desenvoltura nos testes, não só pelas respostas certas que revelavam conhecimentos acima da média, mas pelo humor, tipo Vilhena, com que floreava e adornava os textos que enchiam sempre várias páginas. Lembro-me de uma pergunta num teste de Geografia sobre a pesca em que ele respondeu qualquer coisa como: - “De uma maneira geral pode dizer-se que tudo pesca minha gente! Fez mais à frente alusão ao diferendo que opunha a Espanha e a Inglaterra na então chamada “ Guerra do Bacalhau” respondendo que por causa do nosso fiel amigo andava tudo à estalada.
No polivalente havia um balcão onde se podia comprar um bolo, umas sandes, ou uma garrafa de sumo ou gasosa, ainda não havia coca-cola. Atrás do balcão tinha a atender um moça de corpo generoso, a Fatinha, ares de sabidola e que encaixava sem dificuldade uma graça brejeira ou atrevida. Muito me ri com ela.
E havia o Ginásio, esse lugar que me atraía, com os seus cestos de basket e onde eu podia tomar um banho completo, bem diferente dos banhos às prestações que me proporcionavam as bacias lá de casa. Já nesta altura lavava a cabeça todos os dias de manhã com água fria e sabão Clarim. O cabelo preto ficava brilhante e sedoso o que o tornava uma atracção para a minha amiga Rosa Margarida, aquela que casou com o Luís louro, e que se entretinha, nas escadas que davam para o pátio ao lado do ginásio, a fazer-me e desfazer-me trancinhas e caracóis com um carinho e uma cumplicidade que me fazia desejá-la mas nunca tive a sorte de ter passado para além da amizade. Se calhar foi por isso que, ao fim e ao cabo escolhi uma Margarida primeiro e uma Rosa depois para partilhar a maior parte de minha vida (risos).
Mas voltemos ao ginásio que era gerido pelo contínuo, nosso amigo, Severo. Chegávamos a fazer apostas com ele para ver quem encestava mais e melhor. Tanto treino haveria de dar os seus frutos no campeonato interturmas, onde, como já vos contei umas folhas atrás, fomos campeões vestindo umas camisolas brancas pintadas por nós que ostentavam a sigla F7F, ou seja Fantástico 7º F com um resultado inusitado o nos leva a perguntar se o guarda-redes jogou de costas.
Havia outros jogos que despertavam o nosso interesse como os campeonatos de “escanhoado”, uma espécie de torneio de matraquilhos jogado no café Angola ou no Metrópole, em rápidas saídas nos intervalos ou em atrasos na chegada às aulas. E lá estavam os superdotados em fintas “tic-tac” ou em “tolinhas” ou em “levar á merdinha” reunidos naquilo que nos elevava a adrenalina como hoje fazem as consolas de jogos Nintendo ou Xbox.
Não posso esquecer de deixar aqui uma referência ao “Trinca Cevada”, um jogo que jogávamos no Polivalente e que punha em confronto duas equipas. Uma fazia uma cadeia, todos agarrados pela cintura, dobrados para a frente e com o primeiro da fila encostado a uma parede. Os elementos da outra tomavam lanço, corriam e lançavam-se num voo por cima da fila já formada tentando encavalitar-se o mais à frente possível para dar espaço para os que vinham atrás, quanto mais peso melhor, pois o joga acabava quando a cadeia se desmanchava. Era uma risota, nós já uns homenzinhos com uma brincadeira daquelas.
Mas mais interessante do que isso era o que nos levava a responder quando nos perguntavam:
- O que vais fazer no intervalo?
Muitas vezes a resposta era:
- Vou ver a Estela!!!
O nome diz tudo! Uma estrela que iluminava qualquer sítio por onde passava e, como uma estrela cadente, deixava um rasto de beleza que a todos envolvia em suspiros de admiração. Também eu deixei escapar muitos e fui-me aproximando até conseguir cativar a sua atenção e ser companheiro frequente nos intervalos, fazendo-a rir com as minhas piadas e traquinices.
A amizade floresceu e cheguei a ser convidado para uma festa de aniversário em casa dos seus pais, ao Bairro dos Cedros. Hoje passados trinta anos continua uma mulher radiosa e quando nos cruzamos em qualquer lado (a última vez foi no Norte Shopping há uns meses atrás) trocamos saudades de um tempo que não volta mais mas que faz parte da nossa riqueza, da nossa herança.
Sempre achei que ela era a mulher mais bonita que tivera o prazer de conhecer pessoalmente, mas não fui concerteza o único. Sei pelo menos de uma amiga desses tempos que baptizou a sua filha de Estela em homenagem à amiga do liceu.

A Vida Militar

Estavam os capitães de Abril nos últimos retoques da grande aventura que iria libertar o país de quase cinquenta anos de fascismo e de privações da Liberdade, quando este mancebo, vosso amigo, apanhou na Estação de Campanhã, munido da respectiva Guia de Marcha, o comboio da meia-noite em direcção a Lisboa, mas como o destino era as Caldas da Rainha devia de saltar um pouco antes.
Ensonado, depois de uma noite em branco num comboio (repleto de militares já colocados e outros, como eu, que enfrentavam pela primeira vez estas viagens penosas) de outros tempos onde nunca se ouvira falar em Intercidades ou Pendulares, olho de frente a Porta de Armas do Regimento de Infantaria 5 que me vai acolher como hóspede nos próximos dois ou três meses.
Situação muito similar com a que me acontecera quando olhei pela primeira vez o Colégio dos Órfãos e logo ali decidi que o melhor era encarar a vida militar como um campo de férias onde iria fazer muito desporto, brincar aos cowboys, praticar tiro ao alvo e os exercícios nocturnos podiam muito bem ser entendidos como uma caça aos gambozinos.
Depois de uma inspecção sumária, onde nos colocaram todos nus em fila e depois de conferidos os requisitos adequados, é me confiada a farda que devo estimar e guardar até ao dia em que passe à “peluda”. Fomos depois encaminhados para as casernas onde, na minha versão de férias, iríamos pernoitar e onde me foi reservado um lugar na parte debaixo de um beliche bem colocado pois nem era perto nem longe da casa de banho.
Dois dias depois, já todos sabem o que aconteceu, mas nós lá dentro recebemos ordens para não sair das casernas e só ao fim do dia tivemos uma percepção do que estava a acontecer.
Pelos pequenos rádios transístores começamos a ouvir as palavras de ordem que ficaram para a nossa história: - O Povo unido jamais será vencido!, no meio de informações que Marcelo estava preso e que a Pide estava cercada. Foi uma explosão de alegria e quando mais tarde perguntamos porque o nosso regimento não tinha saído para a rua, foi-nos dito que o quartel da Caldas estava em vigilância apertada depois de uma tentativa de golpe frustrada no passado mês de Março.
No primeiro fim de semana a seguir, que coincidiu com o 1º de Maio, saí de licença e fui recebido nas ruas como um herói, numa contradição do ditado popular que diz que o hábito não faz o monge. Eu, que não tinha mexido uma palha ou passado por algum perigo, era ovacionado só pelo simples facto de andar fardado, como na altura era obrigatório, e podia até viajar nos transportes públicos sem pagar bilhete, prerrogativa antes concedida apenas a fardas da PSP ou GNR ou a portadores dos cartões de funcionário de algum Ministério.
Os dias vão passando em exercícios físicos, horas e horas a tentar acertar o passo ao som do “êrdo!, êrdo!, êrdo direito!, êrdo!,êrdo!, e a tentar fugir às praxes, às ratoeiras, aos actos de voluntariado que me poderiam levar não à prometida tarde na secretaria, mas à limpeza geral das latrinas do meu bloco habitacional. Há também a aprendizagem do manuseamento, desmontagem, lubrificação e posterior montagem das G3, das HK21 ou das FBP, metralhadoras ligeiras de fabrico nacional denunciado pela sua sigla que significava Fábrica Braço de Prata.
Depois da semana de campo cumprida em terrenos perto da foz do Arelho, ao lado de Óbidos (eu não vos disse que estava de férias?), em pequenas tendas, menos confortáveis das que eu experimentara antes em Esmoriz ou Madalena, chega o dia da cerimónia do Juramento de Bandeira, em que a minha Mãe fez questão de estar presente, que indica o fim apressado da recruta e nova Guia de Marcha, para mim um Vaucher já que o destino aí indicado é Tavira, Algarve!
O Algarve era já considerado naquela época um destino de férias de excelência, a que muito poucos se podiam dar ao luxo, ainda longe do caos urbanístico que a ganância de uns e a estupidez ou falta de visão de outros gerou, comprometendo um futuro de riqueza sustentada e delapidando uma natureza que não é só nossa. Por isso a minha expectativa era grande e não foi defraudada na hora de pisar pela primeira vez aquela areia fina e limpa e ao mergulhar, com roupa e tudo, só tirei os sapatos tamanha era a urgência de me deixar abraçar por aquele mar calmo e de temperaturas tão aprazíveis. Mas estou aqui para falar da tropa.
O quartel era um pequeno quadrado inserido muito perto da malha urbana, um portão largo à frente, uma porta bem estreita na parede oposta por onde saíamos para a instrução, manhã bem cedo que o calor vinha cedo também (estávamos em Julho e Agosto).
Lembro de ter estranhado esse calor estival e de ter dormido, no colchão arrancado ao beliche, no chão da casa de banho, as primeiras noites junto com outros companheiros de armas. Dormido não será o termo porque as anedotas sucediam-se e as partidas que pregávamos uns aos outros faziam que estivéssemos sempre com um olho aberto, não fosse o diabo tecê-las.
As mais frequentes eram : ensopar de água os colchões que eram de espuma, espremer os tubos de manteiga que vinham nas rações de combate (sim, tubos como os das pastas dentífricas), no interior das biqueiras das botas que, no outro dia calçadas à pressa, começavam a arder ao fim de meia dúzia passos e que ao longo de uns quilómetros de marcha ou corrida no alcatrão abrasador eram um verdadeiro suplício.
Por isso qualquer intervalo na instrução da manhã era aproveitado para recuperar o sono perdido, nem que fossem só cinco minutos, em que me deitava no chão com a coronha debaixo da cabeça a servir de almofada.
O calor apertava e logo cedo aparecia nas traseiras do quartel um homenzinho empurrando um carrito cheio de cervejas Sagres mini e umas sandes de chouriço a que os meus parcos recursos só tinham acesso no primeiro ou segundo dia da semana. O chefe do nosso pelotão, um tenente lisboeta que fazia já a sua segunda comissão, começava a espumar de sede às primeiras horas da manhã, sede essa que o transformou no melhor cliente do homem do carrito, e havia manhãs que bebia dez ou doze minis, levando-o a esquecer que estava ali para preparar homens que, apesar do 25 de Abril, estavam ainda destinados a embarcar rumo ao Ultramar, se não para defender o Império, para defender os que queriam regressar ao continente naquela que se tornou a maior retirada depois da Segunda Guerra Mundial.
Lembro-me de um compincha baixote, uma réplica humana de um daqueles cabeçudos das festas e romarias, mas numa escala muito reduzida, pois ele não passava do metro e cinquenta e cinco. Tinha o apelido de “ Boca de Sapo”, não pela boca escancarada e com os dentes da frente zangados uns com os outros, mas porque tinha um Citroen DX, um Boca de Sapo.
Era uma espécie de quadradinho de banda desenhada a figura que ele fazia dentro de um carro tão grande como aquele. Deveria ir sentado em pelo menos duas almofadas! Mas era despachado, um lisboeta de gema, reguila.
Fizemos juntos a semana de campo, na Serra do Caldeirão, rodeados dos maiores confortos que podíamos arranjar, atendendo às circunstâncias. Normalmente ficavam três mancebos em cada tenda, sendo esta formada por três panos, um de cada um, o que fazia que as tendas tivessem sempre um lado aberto. No nosso caso éramos só dois mas tínhamos quatro panos, que davam para fechar a tenda completamente e assim ficarmos abrigados dos olhares do nosso tenente quando este simulava um ataque ao acampamento e todos deviam saltar para fora das tendas de armas na mão. Nós ficávamos quedos e mudos, deitados dentro da tenda.
Lembro-me de termos improvisado uma lamparina feita com a tampa de uma lata de graxa cheia de azeite que fomos surripiar à cozinha de campanha, aproveitando para trazer junto chouriços e frutas, que estavam destinados aos oficiais, variando assim a dieta fornecida com as rações de combate.
Foi nessa altura que a ligação à mãe dos meus filhos mais velhos se tornou mais forte o que me fazia esquecer a dureza da semana para me concentrar no prazer de a rever ao fim de semana, mesmo que para isso tivesse que enfrentar doze horas de viagem para cada lado, não num Autopullman com Aire Acondicionado, mas numas camionetas alugadas só para feijão verde que saiam de Tavira sexta-feira por volta das seis da tarde e chegavam à Praça da Batalha às seis da manhã de sábado.
O tempo passava mais rápido na vinda com a expectativa de rever os que amamos, o contrário acontecendo na viagem de regresso que começava às cinco da tarde de domingo, pois devíamos estar no quartel antes das seis da manhã de segunda para podermos responder à chamada já fardados e alinhados na parada.
Tinha alugado na cidade, em conjunto com mais quatro compinchas, um quarto para passar os fins de semana em que não vinha a casa, ou por estar de serviço ou por o dinheiro não dar para a camioneta, e onde deixava a roupa para lavar. Nesses fins de semana aproveitava para descobrir o Algarve à boleia, para conhecer os arraiais e festas populares que em meses de Verão eram muito frequentes e para desenferrujar o inglês e o francês com as muitas turistas que já então proliferavam por ali.
Acabado o Curso de Atirador, a minha especialidade, e já com as divisas de Furriel Miliciano recebo nova Guia de Marcha: Beja!
Situado em plena planura alentejana, nos arredores da cidade, o quartel de Beja era uma área imensa, que se tornava ainda maior nas noites em que estava de serviço como sargento de dia e devia fazer a ronda nocturna, sozinho, levando comigo uma chave que teria de introduzir numa caixa em todos os pontos de controlo que eram cerca de vinte. Cheguei em Setembro, no meio da época da caça e por isso havia na messe de sargentos coelhos com fartura, que chegavam aos nossos pratos nas mais diversas formas.
Encarregado da instrução de dúzia e meia de mancebos vindos de todos os pontos do país, passava os dias no “êrdo, direito” e recebi a segunda missão de responsabilidade, depois de ser sacristão no colégio, que era gerir as sessões práticas de fogo real na carreira de tiro, recebendo o cognome de Sargento de Tiro. Por vezes não eram dados todos os tiros que seriam da praxe o que me fez passar uma tarde inteira, no fim daquela recruta, a estourar caixas e caixas de munição.
Tinham passado já seis meses depois do 25 de Abril e nas casernas o ambiente era mais descontraído, para não dizer uma anarquia, havendo na casa das caldeiras, à noite, reuniões para ouvir música de Jimmy Hendrix e fumar uns charros.
Uma nota negativa pela minha passagem por Beja foi o suicídio do meu soldado 21, que encostou a G3 por baixo do queixo e disparou fazendo um desenho com sangue na parede branca da camarata. Seguiram-se inquéritos e mais inquéritos, não me sendo imputada qualquer responsabilidade.
Aqui tive a noção do que significa a expressão “amplitude térmica”. Eu, que ouvira falar das temperaturas elevadas que com frequência fustigam aquela terras, nunca passei tanto frio na minha vida como nas noites do quartel de Beja, chegando a dormir vestido, só tirava as botas, no meio de cinco ou seis cobertores.
Antes do Natal novas instruções indicam que devo apresentar-me no quartel de Abrantes. É curioso mas não tenho grandes memórias dos tempos passados neste quartel, só sei que as viagens de fim de semana eram agora feitas de comboio, com mudança na incontornável Estação do Entroncamento. Os preços do comboio, para militares, eram ridiculamente baixos, dando-me a oportunidade de viajar muitas vezes em Wagon Lit, cujo preço naquela altura era de cem escudos, com direito a ser acordado na estação anterior pelo revisor do comboio. Era um luxo!
Ultrapassada esta branca na memória chego com armas e bagagens à entrada do meu próximo complexo turístico. Cinco estrelas, o maior que eu vira até então. Ampla avenida central, arborizada, ladeada por robustas construções, uma ampla zona de recepção e controlo, com cinema e outras comodidades como enfermaria, que eu viria a conhecer mais de perto uns meses à frente. Estava a dar entrada no complexo militar de Santa Margarida.
Estou integrado num Batalhão que vai em breve partir para Angola, já não para o mato mas para controlar as cidades, especialmente Luanda de onde vinham alguns relatos preocupantes. Não sou nenhum herói nem muito corajoso e vivia angustiado por saber que tinha que abandonar os que me eram queridos e na incerteza se voltaria inteiro.
As saudades de casa, ler namorada, eram muitas e lembro-me de me ter desenfiado duas vezes a meio da semana para matar saudades ficando hospedado numa pensão ranhosa em frente à Estação de Campanhã, visto não poder ir para casa para não alertar a minha mãe.
Noutra altura em que me calhou ficar de serviço um fim de semana e não arranjando um substituto, fui ter com o capelão da unidade e disse-lhe que a minha namorada tinha fugido de casa, sendo imperioso que me dispensassem para que eu, que sabia onde ela estava escondida, a convencesse a voltar para casa. A coisa pegou tendo direito a mais um dia, se preciso fosse, para resolver tão triste assunto, mas deveria ao voltar, fazer um relatório que por sinal nunca fiz, caindo depois o caso no esquecimento.
A estrela da sorte que eu desejava que me protegesse em Angola, adiantou-se e trouxe ao meu conhecimento que havia camaradas de armas a serem dispensados com um chamado “ Amparo de Família”, que se destinava a quem tivesse outro irmão mais velho na tropa ou já ferido ou morto em combate, ou então aos que fossem precisos para o sustento da família.
Achei que preenchia os requisitos necessários e invoquei que era filho único, que a minha mãe já tinha sessenta anos, pobre e que deveria sair dali para ir ajudá-la. A sorte protege os audazes, ou pelo menos aqueles que se mexem e fazem por isso, e ao fim de uns quinze dias de ter metido o requerimento, viajo para Abrantes para levantar o documento que me passou à disponibilidade em 22 de Maio de 1975, treze meses depois do começo desta aventura.
E, como tudo no Universo está em equilíbrio, a mesma sorte deixou que o taxi, que me transportava de regresso a Santa Margarida, tivesse um acidente enviando-me inconsciente para o hospital com dúvidas de traumatismo craniano e depois para a dita enfermaria do quartel onde acordei sem saber o que se tinha passado. Acordei com vómitos de sangue temendo ter alguma hemorragia interna mas não, era o sangue que eu tinha engolido quando bati com os dentes na cabeça do taxista, que guiava à minha frente, o que agora passados trinta anos levou à queda do primeiro incisivo e consequente uso de uma prótese dentária.
Mas foi o único sangue derramado em defesa da Pátria!

A Família Macedo

Seria de todo injusto se, neste meu livro, eu não fizesse uma referência a esta família que foi tão importante na minha formação social e na minha libertação do gheto onde eu vivia na rua do Sol com a minha mãe.
O Patriarca José Alves Macedo, era - na altura que o conheci como pai da minha namorada Margarida que anos mais tarde seria minha mulher e mãe de dois dos meu filhos - vendedor de electrodomésticos no Santos Guimarães & Oliveira, distribuidores de marcas como Grundig, Fagor e Candy. Uma profissão muito bem remunerada que lhe proporcionava condições para levar uma vida de lord. E sem dúvida que ele sabia tirar bom proveito da vida.
Oriundo da zona de Campanhã, assim como a sua mulher, Dª Conceição, tinha na sua Juventude sido um atleta de eleição no seu desporto favorito, o futebol. O jeito que tinha para dar uns pontapés na bola foi reconhecido pelos olheiros do Benfica e ele rumou à capital para fazer parte das novas esperanças do futebol encarnado. Por uma ou outra razão não vingou na equipa – estávamos no tempo do Coluna e do Eusébio – mas a sua estadia em Lisboa abriu-lhe concerteza os horizontes.
Ainda me lembro do dia em que nos encontramos pela primeira vez, para eu lhe ser apresentado como namorado da sua filha mais nova. Foi no restaurante Areal, em Miramar. Receoso - o respeito é muito lindo e o homem mandava um corpanzil de meter medo – lá fui entabulando conversa, tentando ter respostas acertadas para as perguntas que me ia fazendo. Consegui ser aceite e comecei a
frequentar a sua casa na Rua do Amparo, onde vivem até hoje.
Amante da boa vida e da boa mesa, um dos seus maiores prazeres era pegar na família toda e partir em direcção aos melhores restaurantes conhecidos. Foi com eles que propriamente aprendi a comer de faca e garfo, a colocar o guardanapo no colo, a descascar um camarão, a utilizar o alicate para abrir uma santola, apreciar um bom vinho, um bom queijo da serra e no fim um irish-coffe.
Deixem-me apresentar o resto da família. O Sr Macedo e da Dª Conceição tinham três filhos : a Margarida, a Fernanda, mais velha e o Zézito, o mais novo. Digo tinham porque, infelizmente, o Zé já não está mais entre nós.
A Dª Conceição era uma mulher prendada, tendo passado os seus conhecimentos às duas filhas. Não era preciso ir a um restaurante para se comer uns bons petiscos. Casa farta, deu-me muitas vezes de comer, matou-me a fome e deu-me a conhecer iguarias que eu nunca tinha visto nem provado.
O Zézito era fascinado pelo mundo Walt Disney e fazia colecção de livros de banda desenhada. Passei muitas tardes de ócio, no sofá da sala, a devorar histórias aos quadradinhos.
A Fernanda era na altura empregada de escritório na mesma firma do pai e sempre achou que este gostava mais da irmã mais nova. Conheceu pouco depois em Miramar aquele que viria a ser o seu marido e pai da sua filha Liliana, hoje uma mulher a quem eu insisto em chamar de Lila. Quando era mais pequena aborrecia-a cantando: ó Lila o teu pai tem pila, se não fosse a pila não havia a Lila!
Frequentar a praia de Miramar era na altura muito xique e a Família Macedo tinha sempre uma barraca alugada para todo o mês de Agosto. Na primeira fila da direita era, invariavelmente a segunda barraca mais perto do mar. Chegávamos cedo, perto das oito da manhã porque o Sr. Macedo tinha de ir trabalhar, não sem antes termos passado na Toca Doce, perto do Jardim de S. Lázaro, para comprarmos rissóis, bolinhos de bacalhau ou croquetes, uns lanches e uma dúzia de bolos para juntarmos ao resto do farnel que já ia de casa, pois iríamos ficar na praia até ao fim do dia, hora a que o Sr. Macedo chegava no seu Sinca 1501 amarelo para nos levar de volta a casa. Muitas vezes trazia com ele os petiscos para o jantar que podiam ser uma pescada fresca da Póvoa, um naco de carne do Gerês ou uns salpicões de qualquer lado mas sempre do melhor.
Que saudades de chegar cedo à praia, ela ainda virgem de pegadas, o cheiro da maré vaza, do cafézinho no bar da praia, a leitura do Notícias ainda com a
camisola vestida em manhãs frescas de nevoeiro. Que saudades!
O Homem de Miramar era o Américo, meu cunhado. Era uma daquelas pessoas a quem a sorte nunca sorriu, antes pelo contrário esta nunca o favoreceu. Dificuldades em arranjar trabalho levaram-no a separar-se da família, a filha ainda pequena, e a tentar a sua sorte na Suíça. Tentar, tentou. Mas a sorte estrangeira era igual à nacional e ele nunca consegui um daqueles futuros que outros tantos portugueses alcançaram. Pior que isso. Veio de lá doente, já em fase terminal devido a uma neoplasia da pele, um cancro que o matou em seis meses. Acompanhei conforme pude os seu últimos dias, admirando a estoicidade da Fernanda em ajudá-lo naquilo que podia. Lembro que mesmo perto do fim nos ríamos inocentemente das suas respostas completamente absurdas devido à doença já espalhada na sua pobre cabeça.
Lembro do dia final. Faleceu ao fim da tarde e eu ajudei a Fernanda a vesti-lo, a pô-lo pronto. Ficou essa noite deitado na sua cama – a funerária só ia buscá-lo no dia seguinte - e nós dormimos na sala ali ao lado. Uma experiência rara.
Este capítulo é um agradecimento a toda a família por me ter acolhido no seu seio, me ter educado, me ter proporcionado tantos momentos de verdadeiro prazer e conhecimento das coisas boas da vida. O Sr. Macedo ainda deve estar a perguntar porque é que depois de me conhecer o seu frasco de perfume Aramis começou a durar tão pouco tempo.
Um abraço!