A Hipocondria

Segundo a diciopédia, um estado mórbido de tristeza causado pela ideia de doenças imaginárias. Nome bem extenso para um puto com dez, onze anos que se vê confrontado pela primeira vez com a ideia da doença ou da morte.
No pátio do colégio, no meio da algazarra com que dezenas de gargantas juvenis enchem o ar, senti o primeiro ataque deste inimigo silencioso, imprevisto, assustador. Lembro-me de olhar para o muro extenso e alto que nos separava do cemitério e vê-lo ondular num movimento irreal e estranho.
O medo vem sem avisar e entranha-se, dono e senhor duma pobre cabeça que não consegue encontrar uma razão lógica ou plausível para o mal estar que sente. Vou morrer!!! Gritam alto os confusos pensamentos que baralhados entorpecem os meus sentidos. O primeiro grito de socorro é lançado para os Céus, para a Nossa Senhora, para o Jesus, com um chorrilho de promessas de padre nossos, Avé Marias, terços, tudo o que a fé me oferecia naquele momento para mitigar a minha aflição.
O pior é que ficou a porta aberta para futuros ataques de ansiedade, de medos incompreensíveis, mas tão camuflados de verdade que era impossível ignorá-los ou fugir-lhes. Foram meus companheiros de viagem, aparecendo quando menos esperava, sempre com o factor surpresa a funcionar, sempre com um desespero que nem nas horas de acalmia consigo compreender, ou decifrar.
Dividiram-se mais tarde em dois estados diferentes, não sei qual era o pior, que atacavam sem ordem estabelecida, antes ao acaso e cada vez mais fulminantemente. Ora tinha ataques de hipocondria pura (não podia ouvir falar numa doença sem estar à procura dos sintomas, dos sinais, no meu próprio corpo, confundindo dores de cabeça com aneurisma cerebral, dores de barriga com cancro no estômago, prisão de ventre com cancro nos intestinos e por aí adiante), ora era obsequiado com um síndroma de morte súbita (em que tinha a certeza que iria morrer daqui a um minuto, ou dois, ou meia hora, por paragem cardíaca, derrame cerebral, etc, etc, etc....
Pode parecer, e parece concerteza, um caso de demência, de falta de parafusos, de macaquinhos no sótão. Sei que um dos especialistas que consultei me assegurou que, como eu, havia milhares às voltas com os mesmos medos e ansiedades, e que o corpo e a mente costumam produzir mecanismos de defesa ou de compensação para tamanho infortúnio.
No meu caso chegamos à conclusão que eu procurava nas minhas aventuras amorosas um estado de graça ou um prémio, que me achava no direito de ter, para compensar o sofrimento trazido por tantos e tantos medos.
O medo é uma aventura solitária, porque nos apanha no fundo do nosso Eu, onde mais ninguém vai, e porque nós temos dificuldade em explicar aos outros, mesmo os mais próximos, o que nos aflige, com medo de cair no ridículo e por sentirmos que é uma luta interior só nossa e que a queremos vencer na clandestinidade.
Já estou melhor, as crises foram-se espaçando no tempo, fui-me habituando a conviver com os meus medos. A única coisa que lamento é reconhecer que perdi muitos momentos da minha vida que poderia ter desfrutado de outra maneira. Creio que quando chegar a minha hora, (por volta dos noventa e tal) e se tiver tempo, deixarei instruções para escreverem na minha lápide: - Eu não vos dizia!