A Segunda Infância

O aproximar da idade escolar leva a uma mudança de hábitos e de rotinas. A casa da tia passa a ser local de visita esporádica e fugidia em fim de semana. Os dias vão ser repartidos entre a Escola Primária ao fundo da rua e o quarto com papel de parede cada vez menos sem brilho e sem graça.
Poucas posses, dificuldades mais que muitas, saco com o livrito de leitura, lousa
- com os primeiros sarrabiscos, que o dedo molhado na saliva se encarregava de preparar para nova tentativa de escrita - sandálias de plástico no Verão, tamancos de sola de pau no Inverno, roupas frias mas limpas. O regresso a casa onde a Madonna, que eu chamava de Madrinha, me esperava com um invariável tabefe ou descompostura, ou pior ainda, uma daquelas tarefas domésticas que sobram para o filho da ajudante de cozinheira: esfregar o chão com palha d’aço, lavá-lo com água e sabão amarelo e por fim espalhar a cera cor de rosa que deveria, depois de seca, ser bem polida até brilhar.
Mas o que mais custava era o vagaroso arrastar das horas entre as quatro paredes, dois guarda-vestidos, mesa, cama, cómoda, pechiché, um lavatório redondo de esmalte que abrigava por baixo um bidé em suporte de verguinha de ferro e um guarda loiça que guardava as poucas porcelanas até ao dia em que, ao tentar chegar a uma bisnaga de carnaval escondida por castigo, me pendurei e o guarda loiça abriu as portas e deixou sair as porcelanas que se escaqueiraram no chão.
Outras asneiras se seguiram com outras tantas reprimendas. O vício terrível de lamber os lábios
até gretarem de cieiro e ganharem crosta de ferida que estragaram as fotos a preto e branco do dia da Comunhão na Sé Catedral, apesar das camadas de Pomito Lencart
(para alívio) ou das esfregadelas com malaguetas (para castigo).
As primeiras atracções do feminino: a sobrinha da vizinha do rés do chão que me revelou o sexo imberbe com cheiro fresco de sabonete que eu num gesto puramente instintivo - como se estivesse desde sempre escrito no meu código genético - beijei com profunda veneração como um ateu que descobre a sua divindade; as empregadas da escola que eu roçava a intervalos com espreitadelas por baixo das saias quando elas subiam as escadas; a chefe das continuas que ao me ver espreitar de gatas na casa de banho me escancarou a porta e as pernas para, sem pudor, eu puder desfrutar de uma visão que durante noites me tirou o sono; o atelier da vizinha da frente - a D. Emília que tinha um Renault Gordini
sempre com cheiro a novo - cinco ou seis moçoilas que debochavam com a minha inocência e se entretinham a provocar-me com gestos, com roços, com entrelinhas que eu na altura não decifrava, ao mesmo tempo que apalpavam o inchaço que teimosamente - apesar de toda a minha vergonha e timidez - teimava em crescer-me dentro da braguilha. As primeiras masturbações com os olhos postos na figura da Lola

que em tirinhas no Jornal de Notícias aparecia com vestidos colados ao corpo, generosos decotes e em dias de sorte em fato de banho.
Das aulas em si quase nenhumas recordações. Mas não esqueço o abominável sabor do óleo de fígado de bacalhau distribuído com regularidade e fervor salazarista. Afinal de contas tratava-se de preparar mais uma geração para, quem sabe, a Mocidade Portuguesa
e sem dúvida a Guerra Colonial.
São deste tempo as primeiras explorações em círculos concêntricos, com epicentro no 55 da rua do Sol e cada vez mais alargados, para ficar a conhecer: a Batalha com as linhas entrecruzadas dos eléctricos
(a primeira vez que saltei em andamento também me saltou da mão a cesta que levava a marmita do almoço do taxista, amante à data da Madonna, que nesse dia não almoçou); o cheiro a bolachinhas quentes na rua Entreparedes, a antiga Escola Oliveira Martins, as Fontaínhas mesmo ali ao lado, o Douro de tantas caras, as pontes; a Serra do Pilar; os artesãos da prata que nos passeios da minha rua repuxavam trabalhos lindíssimos em salvas e serviços de chá que iriam enriquecer, sem dúvida, o espólio de algumas famílias mais bafejadas pela sorte ou pela cobertura protectora do antigo regime (Oh! Mãe quem é o Salazar ?
– Shiuu! Não se fala do Salazar, podemos ir presos).
Mas já sabia escrever e a mão pôs no papel, em linhas de tinta saída de aparo molhado em tinteiro, as palavras que uma vizinha do segundo andar, mais letrada, ia debitando em ritmo monocórdico :
- Que-ri-do Pai....!!!
Afinal eu não era só filho da ajudante de cozinheira, como tantas vezes defendera na escola perante o riso de escárnio dos outros putos mais reguilas e conhecedores da natureza humana, mas também do Brasileiro que regularmente enviava uma remessa para as ajudas de custo do crescimento do ramo genealógico que ficara para trás deste lado do Atlântico.
O fim da Primária! O sr. Professor, que nos últimos dias de aulas acumulara em alguma dispensa coelhos, chouriços e outras regalias, avisa a ajudante de cozinheira que o filho não tem jeito para os livros e não valeria a pena esbanjar o dinheiro a pagar os exames de admissão à escola preparatória ( via profissional) e muito menos ao liceu.
O futuro imediato passa pela Farmácia Confiança, esquina de Santa Catarina com Escola Normal. Cem escudos de salário mensal que em dia de pagamento era reduzido dos prejuízos entre frascos partidos e outras tropelias. Tive ao menos o privilégio de alargar os meus horizontes; o Marquês, o Bulhão, os Aliados. Conheci também o cheiro do amoníaco (experiência bizarra), ajudei nas análises à urina que revelavam o estado de tantas mulheres ansiosas, vi pela primeira vez o desgosto na face dum homem maduro - o meu patrão que era manquinho- quando a mulher, a Sra doutora, o trocou por outro.
Há também memórias das primeiras noites de Natal. No quarto com papel de parede nunca houve uma árvore do Natal, nem enfeites. Era uma noite como as outras à excepção de um par de meias ou umas cuecas. Lembro-me do primeiro presente que não foram trapos. Acordei de manhã e vi o embrulho. Pelo formato era uma espingarda. Ao desembrulhar descubro dois tacos de plástico, uma bola branca cheia de pequenas mossas e dois ou três artefactos também em plástico com um buraco no meio: era o desiludido proprietário de um kit de mini-golfe.
Quando já andava sozinho na rua ia na manhã de Natal a casa da madrinha onde na véspera o resto da família se reunira e onde os primos tinham já recebido os seus presentes: legos, pistas de comboios, mechannos, pistolas... era um fartote. Para mim estava reservado mais um par de cuecas. Felizmente havia outras coisas boas: as rabanadas, o leite creme, o pudim francês, o cálice de Porto e o assado da tia Teresa.