A Mãe

Maria do Carmo, nascida de Elvira do Carmo e de um pai incógnito (um proprietário abastado segundo constava) em 3 de Fevereiro de 1913, cresceu entre os campos pobres da Quinta do Deserto, Bairral, Bertiande, Lamego. Seis ou sete irmãos mais novos, tantas bocas para dar de comer, traçaram cedo o seu destino.
Aos doze anos parte para o Porto para servir em casa de família que ia mudando ao fim de algum tempo. Pouco me contou dessas andanças mas lembro-me de me ter falado numa família, para os lados da igreja da Lapa (ele taxista, ela dona de uma pequena casa de retrosaria) que todas as noites jantava bacalhau cozido com batatas, sendo o almoço composto por carne ou peixe invariavelmente acompanhados por arroz de bacalhau. Sete dias por semana, trinta dias por mês!
Até que enjoou e veio trabalhar para a Casa Casais, esquina em frente ao Jardim de S. Lázaro, muito conhecida na época pelos seus petiscos, sendo o seu “Bacalhau à Casais” famoso, tão famoso ao ponto de atrair as estrelas do teatro que, em temporadas no Sá da Bandeira, traziam ao Porto os sucessos já confirmados em Lisboa.
Mulher trintona, corpo talhado por trabalho duro, encanta-se com um empregado de mesa , sorriso maroto, com quem passa a viver maritalmente no quarto com papel de parede.
Que ele lhe pedia um filho, contava ela, tantas vezes que por arte da Natureza nasceu este vosso amigo que hoje tenta reconstruir, com estas letras, uma estória o mais fiel possível às suas lembranças.
Oito meses e dois dias depois embarca ele para o Brasil (cheguei a ouvir à boca pequena que fugia de um caso mal resolvido com uma jovem de 17 anos, mas nunca o pude confirmar) com dinheiros emprestados por esta mãe solteira e pela minha tia Teresa, sua irmã.
Mas a vida continuou e ela nunca quis um padrasto para o seu filho apesar de todas as dificuldades que era criar um filho sozinha.
A seguir foi trabalhar para a rua do Bonjardim, numa casa que ainda hoje existe com o mesmo nome (Conga), mas que na altura não servia bifanas, nem codornizes, antes deliciando os seus clientes com trouxas, pregos, bolinhos de bacalhau e, em época delas, lampreias que, segundo diziam, a minha mãe era exímia a preparar.
E foi vendo-me crescer, primeiro por perto, depois, com a minha entrada no colégio, mais ao longe, sempre atenta, nunca falhando uma segunda-feira.
Reconheço hoje que o turbilhão do crescimento me fez passar despercebida a sua presença, a sua solicitude, a sua compreensão (para as minhas tropelias) e que, mesmo quando mais adulto, houve alturas em que lhe pedia ajuda como se fosse sua obrigação esquecendo que, naquela época, deveria a ser eu a ajudá-la como agradecimento por tudo o que já fizera por mim.
Tentei recompensá-la, já para os fins da vida, quando começou a viver comigo e mais perto dos netos que adorava, mas sempre pronta a ajudar, incansável. Até que a Morte começa a rondar reclamando aquilo que lhe é devido desde a data do nascimento.
Primeiro uma queda na cozinha sem aparente explicação: fractura do colo do fémur, consequente imobilização, os dias passados na cama, tendo que desistir dos passeios no jardim, das brincadeiras com a neta, até dos passeios a Matosinhos onde com paciência guardava os nossos sacos enquanto o filho e ao netos iam surfar.
Recuperação lenta, perna engessada até à anca, fraldas, horas e horas, dias e dias presa numa cama começam a trazer outras dificuldades a nível mental e psíquico tornando-se muito mimada e sempre carente de um gesto, de uma solicitude,
que nunca lhe foram negados mas que ela achava insuficientes.
Os primeiros passos com a sua velha bengala começam a melhorar o seu humor e recordo o seu olhar brilhante aquando da primeira consulta no hospital, para o médico ver a sua recuperação, mostrando orgulhosa que apesar da idade estava a conseguir voltar à sua vida normal como se a sua compreensão fosse tudo o que era preciso para a seu dia a dia voltar a ser o que era dantes.
Alegria de pouca dura, uma trombose ( agora chamam-lhe AVC, nome mais técnico-científico, que não esconde o drama) vem apanhá-la desprevenida e empurrá-la de novo para a cama, mas desta vez com um significado completamente diferente, mais brutal, mais desumano, mais doloroso.
A paralisia ataca-lhe todo o lado esquerdo, membros inertes, inúteis, boca ao lado lembrando-nos a cada instante o drama que se desenrola diante dos nossos olhos. Recordo com ternura que nos primeiros tempos de recuperação, no hospital de Valongo, a sua cabeça baralhada pelo impacto do derrame criava estórias inverosímeis que, apesar do drama, tinham imensa piada: eu não era seu filho, mas sim da doente da cama do fundo, chamava-me Ernesto e ia lá ao hospital porque andava metido com uma enfermeira daquele bloco. Outras coisas sem nexo produzia aquela mente confusa mas que eu, pela força do tempo, fui esquecendo.
Daqui para a frente foi sempre a piorar, cada vez mais débil, cada vez mais minada pelas complicações que iam surgindo, umas atrás das outras, deixando-me arrasado após cada visita diária à casa onde passou os seus últimos dias.
Partiu, no fim de um sofrimento que não merecia, deixando um vazio no meu coração que sempre estivera habituado à sua palavra amiga ou ao seu silêncio compreensivo.
Que esteja em Paz!